Marketing e Comunicação são temas de mesa de Conferência organizada pelo Ethos
Lisandra Maioli
10/06/2005
http://www.setor3.com.br/senac2/calandra.nsf/0/D315450930DD83318325701C006B5D7E?OpenDocument&pub=T&proj=Setor3&sec=REPORTER+S3
A comunicação tem um papel importante na comunidade no processo de formação de valores da sociedade. Ela dissemina valores, forma opinião, estimula ações, promove a cultura de uma nação. Refletindo sobre esses temas, o Painel "Comunicação ética e construção de valores para uma sociedade sustentável" procurou debater no último dia 8 de junho os impactos e a contribuição da comunicação empresarial na formação e disseminação de valores éticos de uma sociedade sustentável.
Com palestra inicial do vice chairman da SustainAbility, Geoff Lye, a mesa contou com a mediação do gerente de Comunicação do Instituto Ethos, Leno F. Silva e com os debatedores: Ricardo Guimarães, presidente da Thymus Branding; Evandro Vieira Ouriques, coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência e pesquisador da Escola de Comunicação da URFJ; Rosa Alegria, presidente da Perspektiva – Tendências, Cenários e Estratégias.
O debate ficou em torno principalmente do marketing institucional e social praticado por empresas. Um acontecimento recente lembrado pela platéia e exposto por Guimarães foi sobre a proibição da veiculação da propaganda da Volkswagen que, segundo o próprio Guimarães "foi uma podução publicitária no mínimo ingênua. Mas a sociedade surpreendeu pedindo a retirada da propaganda. Minha avaliação em relação a esse acontecimento é positiva já que houve uma reação da sociedade", sorri.
Embora o foco do debate tenha sido a comunicação pela ótica do marketing, o jornalismo também foi questionado como prática social. Para o professor e também jornalista Evandro Vieira Ouriques, que defendeu a tese da Gestão da Mente nesse processo, "as pessoas, assim como as empresas, precisam voltar a pensar e a sentir por si mesmas. Esquecemos muitas vezes que o que vemos nos jornais são recortes da realidade e não a realidade em sua totalidade", alerta.
O professor Vieira destacou ainda que, segundo pesquisa realizada por ele, a crise da solidariedade social acontece principalmente pelo descompasso entre a palavra e a ação: "Não há solidariedade se o ato ou a ação exclui a palavra que a fundou", explica lembrando que muitas empresas pregam responsabilidade social usando as ferramentas de marketing, mas por outro lado, não a pratica internamente. A solução, para ele, seria se a Comunicação fosse encarada "por uma visão mais holística, em que lembramos que somos seres incluídos em grupos, sejam nossas famílias, sejam a empresa na qual trabalhamos", explica o professor. "Quando entendermos que 'eu' e o 'outro', 'empresa' e 'público', são um só, não seremos mais ameaçados pela ânsia pelo lucro", completa.
A presidente da Perspektiva, Rosa Alegria, concorda com o professor: "Precisamos desenvolver uma expressão crítica sobre como a comunicação empresarial, o marketing e o jornalismo têm sido praticados", indigna-se. Rosa diz sentir uma "urgência" em relação a esse processo e defende que "a comunicação como um todo não tem que simplesmente mudar, precisa sim de uma grande transformação". Ela acredita que a solução é avaliar como a comunicação vê o ser humano: "Para se fazer ética na comunicação, é necessário se mudar a ótica que a comunicação vê o ser humano. E sempre pensar qual é o impacto que a comunicação das empresas têm sobre nós", alerta. Ela pede atenção para a responsabilidade de cada campanha finalizada, de cada matéria 'fechada': "Existe uma reflexão sobre o impacto da comunicação quando ela é desenvolvida? Avalia-se se o efeito nas pessoas é bom, positivo?", indaga para a platéia.
Rosa defende que para se construir um futuro solidário e sustentável, é necessário se pensar qual é a imagem que a comunicação está construindo sobre o futuro. Para ela, essas imagens do futuro, que não têm sido construídas e sim destruídas pela comunicação, são fundamentais para uma mobilização da sociedade poder construir um futuro sustentável para seus filhos e netos. "Precisamos sair desse caminho de críticas e partir para o da celebração, jogando os holofotes para o que tem acontecido de positivo, de importante, de solidário", elucida.
Outra preocupação de Rosa é em relação a incentivo consumista que o marketing e a comunicação provocam no indivíduo: "Se analisarmos a palavra 'consumo' etimologicamente, percebemos que 'Com+sumo' significa 'fim' e o que precisamos nos lembrar é que a vida tem continuidade, o fim não é o sentido da vida", indigna-se. Para ela, tem-se praticado o que chamou de "Branding irresponsável", em que, segundo ela, o "eu" ser Humano tem sido reduzido a "mercado", resultando numa invasão de marcas e desconstrução de nossa própria identidade. Com essa reflexão, ela destaca ainda a importância da comunicação para construção de valores da sociedade: "Temos que refletir que não somos simplesmente um ser consumista e sim um ser pensante e social e nesse processo, a comunicação tem um papel fundamental", diz. "É importante culturalmente encontremos novas formas de olhar, transformar estes processos e ir além do que as empresas acham que o consumidor quer", completa Guimarães.
Mas, segundo Rosa, a Comunicação em geral está passando por uma fase de angústia, o que pode ser positivo se isso levar alguns profissionais à reflexão sobre seu papel. Um exemplo positivo, para Rosa, é o trabalho realizado pela EthicMark que dedica um selo de ética para comunicações socialmente responsáveis. Outros exemplos citados por Rosa são: iPaz e Imagens e Vozes da Esperança, projetos realizados por comunicadores tão "indignados" quanto ela com a falta de ética praticada na comunicação. "Trata-se de um conjunto de jornalistas e profissionais da comunicação que estão se reinventando e dando possibilidades para a construção de uma comunicação mais ética e pensando na evolução da consciência", orgulha-se.
O vice chairman da SustainAbility, Geoff Lye, único não-brasileiro da mesa, elogiou a sinergia entre os debatedores e garante que tem uma visão otimista e positiva sobre os problemas enfrentados pela comunicação que, segundo ele é mundial: "O fato de em todos os lugares do planeta estamos nos reunindo para fazermos juntos essa reflexão já aponta que estamos buscando caminhos melhores permeados por valores bons", acredita. Ele destacou ainda que as empresas precisam ter parte nesse processo da busca da solução dos problemas que não só a comunicação está enfrentando como toda a sociedade: "A maioria ignora que faz parte do processo de mudanças, ma só assim seremos capas de agir", finaliza aplaudido pela platéia.
A Conferência Internacional 2005 - Empresas e Responsabilidade Social, organizada pelo Instituto Ethos em parceiria com o PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, aconteceu neste mês de junho em São Paulo. Já na sétima edição, teve como tema central "Parceira para uma Sociedade Sustentável", dividido em plenárias, mesas-redondas, painéis temáticos, oficinas de gestão e exposição, além de atrações culturais.
Ao Ilustríssimo Senhor
Evandro Vieira Ouriques
evouriques@terra.com.br
Prezado Senhor,
Vimos pela presente compartilhar os diversos elogios que recebemos durante a Conferência Internacional 2005 - Empresas e Responsabilidade Social, que o Instituto Ethos promoveu em parceria com o PNUD.
Esta Conferência contou com a participação de cerca de 1200 pessoas e 84 palestrantes, com a cobertura de aproximadamente 160 jornalistas, sendo transmitida on line pelos sites do Instituto Ethos, Instituto Algar e pela rádio do portal Mega Brasil e, ao vivo, pela Rádio CBN.
A sua participação no Painel Temático 4 -Comunicação Ética e Construção de Valores para uma Sociedade Sustentável, contribuiu imensamente para esse resultado.
Agradecemos sua colaboração e esperamos contar com a sua contribuição em outras oportunidades.
Atenciosamente,
Paulo Itacarambi
Diretor-Executivo
Instituto Ethos
Tuesday, 14 June 2005
Friday, 3 June 2005
Meu projeto de Pós-Doutorado é aceito pelo PACC/UFRJ: A Desobediência Civil Mental
Tenho a felicidade de informar que meu projeto de pesquisa de pós-doutorado foi aceito ontem pelo colegiado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea do Forum de Ciência e Cultura da UFRJ, coordenado por Heloísa Buarque de Hollanda. Estou profundamente grato a Heloísa, a todo o seu amor.
E a minha esposa Estelitta, por estar tão decidida e carinhosamente junto a mim.
Eis a síntese de meu projeto deste método que criei e sustento:
Projeto de Pesquisa
Pós-Doutorado do
Programa Avançado de Cultura Contemporânea
PACC/FCC/UFRJ
Desobediência Civil Mental:
A ação afirmativa na Mídia e na Política e a epistemologia não-dualista
Prof. Dr. Evandro Vieira Ouriques
Coordenador do Núcleo de Estudos Trandisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON/Escola de Comunicação/UFRJ
“A desobediência civil é reservada para aqueles que têm as qualificações necessárias. É só desta maneira, precisamente, que ela se torna o próprio oposto da desobediência criminal.”
Johan Galtung
“Eu vou torcer pela paz/Pela alegria, pelo amor/Pelas coisas bonitas/Eu vou torcer, eu vou/Pelas coisas bonitas/
Eu vou torcer, eu vou.”
Jorge Benjor, na voz de Fernanda Abreu
1.
Objetivo
Aperfeiçoar o método Desobediência Civil Mental-DCM (conceito criado e sustentado pelo autor), de maneira a potencializar a sua eficácia em capacitar pessoas físicas e jurídicas (indivíduos, lideranças, redes, organizações, instituições e empresas), na inclusão social (resistir e criar), por meio do entendimento do mundo como construção mental, através da abordagem comparativa entre o pensamento gandhiano e o advaita vedanta com o pensamento pós-moderno: a percepção é o momento privilegiado do agir. E de que, portanto, pensamento e vontade (estados mentais ; programas mentais; mindware ) são o primeiro aparelho de captura, condição que atinge limite crítico quando se está mergulhado nas “estéticas da comunicação”.
Este método começou a ser estabelecido no início dos anos 80, quando as novas tecnologias surgiram, e o autor criou em 1981, na Escola de Comunicação, o então Centro de Estudos Transdisciplinares de Expressão Visual e Muldimensional-CETEX, hoje o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON.
2.
Síntese
A Desobediência Civil Mental, como operação psico-política de resistência, organização, mobilização e criação no -e a partir do- corpo-mente, em direção ao corpo coletivo, demanda um sentido de absoluta urgência nesta atualidade engendrada, como dito, nas “estéticas da comunicação”: pois elas, ao hibridizarem ciência, comunicação, arte e psicologia na formação da mídia-mundo, disponibilizam um potencial extraordinário de gênese maquínica sincronizada com gênese físico-biológica do ser vivo –biopoder- o que, no entanto, não fornece, por si mesmas, uma referência ética capaz de dar conta da dinâmica entre Liberdade e Vinculação Social.
Ou seja, como fazer para que a experimentação performática do e no lugar que se acredita vazio do sujeito, isto é, como fazer para com que o preenchimento oscilatório e paradoxal deste que “sou eu” em performance não suprima a afirmação do “outro”?
Dito ainda de outra forma, que referência usar no momento exato da operação perceptiva durante o “tempo nenhum” da “ubiqüidade, da simultaneidade, da instantaneidade” -quando o tempo dos vários canais e histórias simultâneas convergem, dilatados, bifurcados, “expandindo ou se contraindo e convergindo para um só ponto” - de maneira a que a tolerância (enquanto convívio com a Diferença) quando “se confronta o intolerante com a realidad que todos partilham como espaço vital, [levando-o] ao diálogo incansável e fazer-lo pensar nas contradições de sua posição (...) [para que seja possível] incluir a todos e respeitar um pacto social comum” ? De maneira a que a percepção escolhida por um sujeito –físico ou jurídico- não implique na supressão da afirmação de outro sujeito, entendida tal supressão exatamente como a própria violência?
Para que o ser vivo resolva problemas, como é próprio de sua condição -adaptando-se ao meio, modificando-o ou modificando-se- ele necessita de uma referência que não é, nunca, de ordem tecno-lógica strictu sensu, por tanto da ordem da prótese, mas sim da ordem do conhecimento mental, de um quadro de referência mental, de um pensamento, mesmo que co-produzido maquinicamente, que lhe informe que decisão lhe garantirá a melhor qualidade de vida dentre as fornecidas por sua ontogênese, enquanto ser vivo, e pela “morfogênese das imagens sintéticas que se auto-produzem, fundando uma autopoiesis lógico-matemática, que depende de modelos pré-existentes mas também tem sua margem de invenção, nascida na interação máquina/operador” .
Ou seja, a DCM trata de como a pessoa física e jurídica podem decidir a seu próprio favor onto e morfogeneticamente diante da força de “sujeito”, de “autor”, de “ator” que tem a imagem digital. De outra forma, como fazer para que sua decisão lhe seja favorável, entendendo-se como favorável a decisão que não lhe exponha às indesejadas e mortais conseqüências da crise ecológica, da exclusão social e da opção criminal?
É assim que a DCM se efetiva como ação afirmativa na Mídia e na Política através da utilização da epistemologia não-dualista, o que permite entender que a produção de Diferença só articula liberdade e vinculação social (e assim escapa à captura) quando percebe igualmente a Semelhança , de maneira a que, por exemplo, redes de ativismo não sejam meras redes de interesse e que as indispensáveis alianças, também verticais, possam ocorrer.
Tem-se como meta a re-construção e ressignificação de conhecimentos e valores para a capacitação (re-educação) das pessoas físicas e júridicas a partir delas próprias, de maneira a que elas se assumam como tais –sujeitos de si mesmas- em meio e para além do capitalismo midiático ou cognitivo; tornando-se visíveis -em primeiro lugar- para si próprios, ao responsabilizarem-se por seus destinos; e ao resistirem e responderem criativamente aos aspectos catastróficos da globalização econômica: em especial através da construção de uma Comunicação e de uma Mídia conscientes (o mesmo que não-violentas , entendendo que a Não-Violência covarde é pior do que a violência por causas justas ) e do fortalecimento das Redes de Ativismo (de Convivência, de revitalização da dimensão do político ).
E a minha esposa Estelitta, por estar tão decidida e carinhosamente junto a mim.
Eis a síntese de meu projeto deste método que criei e sustento:
Projeto de Pesquisa
Pós-Doutorado do
Programa Avançado de Cultura Contemporânea
PACC/FCC/UFRJ
Desobediência Civil Mental:
A ação afirmativa na Mídia e na Política e a epistemologia não-dualista
Prof. Dr. Evandro Vieira Ouriques
Coordenador do Núcleo de Estudos Trandisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON/Escola de Comunicação/UFRJ
“A desobediência civil é reservada para aqueles que têm as qualificações necessárias. É só desta maneira, precisamente, que ela se torna o próprio oposto da desobediência criminal.”
Johan Galtung
“Eu vou torcer pela paz/Pela alegria, pelo amor/Pelas coisas bonitas/Eu vou torcer, eu vou/Pelas coisas bonitas/
Eu vou torcer, eu vou.”
Jorge Benjor, na voz de Fernanda Abreu
1.
Objetivo
Aperfeiçoar o método Desobediência Civil Mental-DCM (conceito criado e sustentado pelo autor), de maneira a potencializar a sua eficácia em capacitar pessoas físicas e jurídicas (indivíduos, lideranças, redes, organizações, instituições e empresas), na inclusão social (resistir e criar), por meio do entendimento do mundo como construção mental, através da abordagem comparativa entre o pensamento gandhiano e o advaita vedanta com o pensamento pós-moderno: a percepção é o momento privilegiado do agir. E de que, portanto, pensamento e vontade (estados mentais ; programas mentais; mindware ) são o primeiro aparelho de captura, condição que atinge limite crítico quando se está mergulhado nas “estéticas da comunicação”.
Este método começou a ser estabelecido no início dos anos 80, quando as novas tecnologias surgiram, e o autor criou em 1981, na Escola de Comunicação, o então Centro de Estudos Transdisciplinares de Expressão Visual e Muldimensional-CETEX, hoje o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON.
2.
Síntese
A Desobediência Civil Mental, como operação psico-política de resistência, organização, mobilização e criação no -e a partir do- corpo-mente, em direção ao corpo coletivo, demanda um sentido de absoluta urgência nesta atualidade engendrada, como dito, nas “estéticas da comunicação”: pois elas, ao hibridizarem ciência, comunicação, arte e psicologia na formação da mídia-mundo, disponibilizam um potencial extraordinário de gênese maquínica sincronizada com gênese físico-biológica do ser vivo –biopoder- o que, no entanto, não fornece, por si mesmas, uma referência ética capaz de dar conta da dinâmica entre Liberdade e Vinculação Social.
Ou seja, como fazer para que a experimentação performática do e no lugar que se acredita vazio do sujeito, isto é, como fazer para com que o preenchimento oscilatório e paradoxal deste que “sou eu” em performance não suprima a afirmação do “outro”?
Dito ainda de outra forma, que referência usar no momento exato da operação perceptiva durante o “tempo nenhum” da “ubiqüidade, da simultaneidade, da instantaneidade” -quando o tempo dos vários canais e histórias simultâneas convergem, dilatados, bifurcados, “expandindo ou se contraindo e convergindo para um só ponto” - de maneira a que a tolerância (enquanto convívio com a Diferença) quando “se confronta o intolerante com a realidad que todos partilham como espaço vital, [levando-o] ao diálogo incansável e fazer-lo pensar nas contradições de sua posição (...) [para que seja possível] incluir a todos e respeitar um pacto social comum” ? De maneira a que a percepção escolhida por um sujeito –físico ou jurídico- não implique na supressão da afirmação de outro sujeito, entendida tal supressão exatamente como a própria violência?
Para que o ser vivo resolva problemas, como é próprio de sua condição -adaptando-se ao meio, modificando-o ou modificando-se- ele necessita de uma referência que não é, nunca, de ordem tecno-lógica strictu sensu, por tanto da ordem da prótese, mas sim da ordem do conhecimento mental, de um quadro de referência mental, de um pensamento, mesmo que co-produzido maquinicamente, que lhe informe que decisão lhe garantirá a melhor qualidade de vida dentre as fornecidas por sua ontogênese, enquanto ser vivo, e pela “morfogênese das imagens sintéticas que se auto-produzem, fundando uma autopoiesis lógico-matemática, que depende de modelos pré-existentes mas também tem sua margem de invenção, nascida na interação máquina/operador” .
Ou seja, a DCM trata de como a pessoa física e jurídica podem decidir a seu próprio favor onto e morfogeneticamente diante da força de “sujeito”, de “autor”, de “ator” que tem a imagem digital. De outra forma, como fazer para que sua decisão lhe seja favorável, entendendo-se como favorável a decisão que não lhe exponha às indesejadas e mortais conseqüências da crise ecológica, da exclusão social e da opção criminal?
É assim que a DCM se efetiva como ação afirmativa na Mídia e na Política através da utilização da epistemologia não-dualista, o que permite entender que a produção de Diferença só articula liberdade e vinculação social (e assim escapa à captura) quando percebe igualmente a Semelhança , de maneira a que, por exemplo, redes de ativismo não sejam meras redes de interesse e que as indispensáveis alianças, também verticais, possam ocorrer.
Tem-se como meta a re-construção e ressignificação de conhecimentos e valores para a capacitação (re-educação) das pessoas físicas e júridicas a partir delas próprias, de maneira a que elas se assumam como tais –sujeitos de si mesmas- em meio e para além do capitalismo midiático ou cognitivo; tornando-se visíveis -em primeiro lugar- para si próprios, ao responsabilizarem-se por seus destinos; e ao resistirem e responderem criativamente aos aspectos catastróficos da globalização econômica: em especial através da construção de uma Comunicação e de uma Mídia conscientes (o mesmo que não-violentas , entendendo que a Não-Violência covarde é pior do que a violência por causas justas ) e do fortalecimento das Redes de Ativismo (de Convivência, de revitalização da dimensão do político ).
Thursday, 16 December 2004
Aluna de Linguagem Gráfica aplica nossa percepção das relações entre Mídia, Ética e Estética e sua vida e de sua família mudam
Muitos são os depoimentos favoráveis à percepção e metodologia (desenvolvidas nos últimos 30 anos e consolidadas a nível de Mestrado e Doutorado) que uso para tratar das relações entre Mídia, Ética e Estética.
Muitos destes depoimentos estão em meu arquivo.
Aqui está um deles, para mim especialmente estimulante, da aluna Renata Lehmann:
From: "tatapots"
Date: Wed, 15 Dec 2004 00:26:22 -0300
To: "evandroshaktishiva"
Subject: Conclusão =)
Olá Evandro!
Aqui é a sua ex-aluna mala, a Renata da EC1 2004-2, pra variar. Tudo bom?
Escrevo-lhe para dizer o quanto foi bom ter aula com você no meu primeiro período da faculdade. Pelo visto, não fui só eu que gostei. Sua participação no nosso amigo oculto é prova disso. Não abrimos a brincadeira para nenhum outro professor - não por mal, mas parece que a única pessoa que fez nascer em nós um sentimento de amizade aluno-professor foi você. Sempre há os que acham que quem se apega a algum professor, é puxa-saco... na nossa turma não foi diferente. Mesmo assim, posso te garantir que gosto de você de graça, e que por mais que soe como auto-propaganda, não é do meu perfil dizer que gosto das pessoas apenas para conseguir algo em troca.
Estou enchendo sua caixa-postal mais uma vez - só que agora para dizer o quanto eu me tornei uma pessoa melhor depois de suas aulas. Obrigada por ser um cara tão doce e amável com seus alunos. Creio que dificilmente encontraremos outro professor tão amigo quanto você. Não sabia que poderia aprender tanto sobre a vida numa universidade...definitivamente sou uma pessoa mais tranquila, com menos "colapsos psicóticos". Aprendi com você a ser um ser humano menos reto - a aceitar as diferenças do Outro e a nunca mais julgá-lo. Sempre há alguma coisa linda dentro de cada pessoa que , se temos a oportunidade de conhecer, somos realmente privilegiados. Porém, só seremos privilegiados se estabelecermos um "entre" com o
Outro. Aprendi a escutar mais do que falar; a sorrir mais do que reclamar e a gostar de mim do jeito que eu sou. Obrigada por tudo Evandro. Eu realmente espero que continuemos amigos e que, você e a sua família tenham na vida toda a paz e tudo de bom que há no mundo, pois vocês merecem.
Ah, e não sei se você vai ficar feliz com isso, mas saiba que você arranjou uma propagadora do mundo "Evandrístico". Tento semear nas pessoas o mesmo que você tentou semear nos seus alunos: mais paz de espírito e serenidade e menos corrupção humana, menos violência. Meu pai e meu namorado mesmo já são ótimos alunos =) O primeiro é arquiteto e o segundo, administrador. Mesmo não estando inseridos no mundo das ciências humanas, ficam completamente curiosos e interessados (além de boquiabertos) com as verdades e melhoras que a linguagem gráfica nos proporcionam =) Meu pai já até roubou sua dissertação de mim para lê-la.
Outra coisa: sou infinitamente agradecida a você também por me ajudar a ajudar (sem que eu percebesse) meu pai a parar de fumar. Antes eu não tinha paciência com ele, e não entendia que quanto mais grosserias e mais chantagens eu fizesse, menos estímulo ele teria para parar de fumar. Mas nunca tinha pensado o quão importante era dizer o quanto eu gostaria de abraçá-lo, e de ficar mais perto dele. E que o cheiro de cigarro dele somado a todas as minhas alergias e problemas de faringe só me afastava dele. Só me fazia ficar mais triste por não poder estar perto dele, que eu tanto amo. Eu nunca tinha dito a ele que o amava. Pois bem, falei isso já sem intenção nenhuma deconvencer, apenas como desabafo. Estabeleci um diálogo com ele, viramos amigos. Aprendi com você que a violência do ato de tentar forçar ou impor algo a alguém, só torna as coisas mais desagradáveis. Sem que eu percebesse, ele parou de fumar. Já está há 1 mês sem colocar um cigarro sequer na boca . Um cara que fumou como uma chaminé desde os 13 anos de idade, e que agora tem 51, disse para
mim que ele não sabia que eu gostava tanto dele assim, e que para ter o carinho da filha dele, e apenas isso, ele parou de fumar. Isso pra mim já valeu a vida inteira.
Acho que não preciso dizer mais nada.
Muito obrigada por tudo, Evandro! Você é show de bola mesmo.
Um grande abraço cheio de boas vibrações para você e para sua família
Renata Lehmann
Muitos destes depoimentos estão em meu arquivo.
Aqui está um deles, para mim especialmente estimulante, da aluna Renata Lehmann:
From: "tatapots"
Date: Wed, 15 Dec 2004 00:26:22 -0300
To: "evandroshaktishiva"
Subject: Conclusão =)
Olá Evandro!
Aqui é a sua ex-aluna mala, a Renata da EC1 2004-2, pra variar. Tudo bom?
Escrevo-lhe para dizer o quanto foi bom ter aula com você no meu primeiro período da faculdade. Pelo visto, não fui só eu que gostei. Sua participação no nosso amigo oculto é prova disso. Não abrimos a brincadeira para nenhum outro professor - não por mal, mas parece que a única pessoa que fez nascer em nós um sentimento de amizade aluno-professor foi você. Sempre há os que acham que quem se apega a algum professor, é puxa-saco... na nossa turma não foi diferente. Mesmo assim, posso te garantir que gosto de você de graça, e que por mais que soe como auto-propaganda, não é do meu perfil dizer que gosto das pessoas apenas para conseguir algo em troca.
Estou enchendo sua caixa-postal mais uma vez - só que agora para dizer o quanto eu me tornei uma pessoa melhor depois de suas aulas. Obrigada por ser um cara tão doce e amável com seus alunos. Creio que dificilmente encontraremos outro professor tão amigo quanto você. Não sabia que poderia aprender tanto sobre a vida numa universidade...definitivamente sou uma pessoa mais tranquila, com menos "colapsos psicóticos". Aprendi com você a ser um ser humano menos reto - a aceitar as diferenças do Outro e a nunca mais julgá-lo. Sempre há alguma coisa linda dentro de cada pessoa que , se temos a oportunidade de conhecer, somos realmente privilegiados. Porém, só seremos privilegiados se estabelecermos um "entre" com o
Outro. Aprendi a escutar mais do que falar; a sorrir mais do que reclamar e a gostar de mim do jeito que eu sou. Obrigada por tudo Evandro. Eu realmente espero que continuemos amigos e que, você e a sua família tenham na vida toda a paz e tudo de bom que há no mundo, pois vocês merecem.
Ah, e não sei se você vai ficar feliz com isso, mas saiba que você arranjou uma propagadora do mundo "Evandrístico". Tento semear nas pessoas o mesmo que você tentou semear nos seus alunos: mais paz de espírito e serenidade e menos corrupção humana, menos violência. Meu pai e meu namorado mesmo já são ótimos alunos =) O primeiro é arquiteto e o segundo, administrador. Mesmo não estando inseridos no mundo das ciências humanas, ficam completamente curiosos e interessados (além de boquiabertos) com as verdades e melhoras que a linguagem gráfica nos proporcionam =) Meu pai já até roubou sua dissertação de mim para lê-la.
Outra coisa: sou infinitamente agradecida a você também por me ajudar a ajudar (sem que eu percebesse) meu pai a parar de fumar. Antes eu não tinha paciência com ele, e não entendia que quanto mais grosserias e mais chantagens eu fizesse, menos estímulo ele teria para parar de fumar. Mas nunca tinha pensado o quão importante era dizer o quanto eu gostaria de abraçá-lo, e de ficar mais perto dele. E que o cheiro de cigarro dele somado a todas as minhas alergias e problemas de faringe só me afastava dele. Só me fazia ficar mais triste por não poder estar perto dele, que eu tanto amo. Eu nunca tinha dito a ele que o amava. Pois bem, falei isso já sem intenção nenhuma deconvencer, apenas como desabafo. Estabeleci um diálogo com ele, viramos amigos. Aprendi com você que a violência do ato de tentar forçar ou impor algo a alguém, só torna as coisas mais desagradáveis. Sem que eu percebesse, ele parou de fumar. Já está há 1 mês sem colocar um cigarro sequer na boca . Um cara que fumou como uma chaminé desde os 13 anos de idade, e que agora tem 51, disse para
mim que ele não sabia que eu gostava tanto dele assim, e que para ter o carinho da filha dele, e apenas isso, ele parou de fumar. Isso pra mim já valeu a vida inteira.
Acho que não preciso dizer mais nada.
Muito obrigada por tudo, Evandro! Você é show de bola mesmo.
Um grande abraço cheio de boas vibrações para você e para sua família
Renata Lehmann
Tuesday, 31 August 2004
A Ancestralidade, o Rim e o Umbigo: Reflexões Práticas no Inverno Anual e Civilizatório
Artigo de Evandro Vieira Ouriques
(escrito para a minha intervenção no trabalho Inverno-Ciclo das Estações pela Medicina Chinesa Antiga, dirigido pela Dra. Rose Souza, em 04.08.2004, na Associação Brasileira de Arte e Ciência Oriental, Rio de Janeiro, dirigida pelo Dr. Raimundo Sohaku)
Quando me perguntam "Como cuido de mim ou de minha organização?", recomendo a construção de estados mentais não-violentos. Neste Inverno, a Dra. Rose Souza chama a atenção, em seu reconhecido trabalho, que esta Estação é, para a medicina chinesa antiga, o Tempo do Rim e da Bexiga. E que no Rim está armazenada a Ancestralidade, esta questão decisiva em minha vida e trabalho.
A construção de estados mentais não-violentos, o mesmo que estado de saúde, depende de que tenhamos nossa mente focada nos ensinamentos que advêm do fato concreto –inarredavelmente científico- de que temos ancestrais e que nossa interdependência para com eles precisa ser levada em conta. O que demanda um grande esforço, pois a economia psíquica pós-moderna se organiza ao redor da antecipação do futuro, ou seja, do que vem depois, do próximo objeto, da próxima conquista (seja de uma pessoa que assim se torna um objeto ou de qualquer outro objeto de consumo).
Recentemente quando estive na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro (1) para falar a respeito das relações entre a não-violência mental e a saúde psíquica e social, uma especialista presente comentou um fato extremamente sintomático. O Hospital da Aeronáutica/RJ -o antigo e belo Hospital Alemão, situado no Rio Comprido e entregue ao Governo Federal em 1942- passou recentemente por uma reforma de "modernização" e a pedra fundamental daquele histórico prédio simplesmente sumiu. Ninguém sabe onde está o fundamento. Não é à toa que a medicina alopata trabalha apenas o sintoma e desconhece a origem causal, pois ela só pode ser encontrada sempre a partir do passado, do fundamento.
Ao contrário desta tendência cada vez mais intensa hoje de valorizar apenas o "novo", a ciência prova exaustivamente que é apenas graças aos nossos ancestrais que temos existência. Graças à árvore da qual somos fruto: tanto a árvore genealógica mais diretamente humana, nossos ancestrais pré-históricos, quanto aos nossos impensáveis ancestrais biológicos, celulares. Recentemente o estudo do genoma humano, por exemplo, nos revelou insuspeitos e íntimos parentescos nossos com certos animais como o rato…
Cientificamente, somos uma grande família. Como seres vivos e como seres sociais, nós somos descendentes -por reprodução- não apenas de nossos antepassados humanos, como dito, mas, muito além, de ancestrais não-humanos e por isso muito diferentes e que remontam há mais de três bilhões de anos. As células eucariontes, por exemplo, que compõem a totalidade dos corpos humanos, surgiram por volta de dois a dois bilhões de meio de anos atrás…
Todas as nossas células são descendentes, igualmente por reprodução, da célula particular que se formou quando um óvulo se uniu com um espermatozóide e nos deu origem (2). Não levamos em conta esta realidade em cada uma de nossas decisões, por exemplo. E é assim que ficamos doentes, desmemoriados do que somos.
Todas as células de um indivíduo são portanto descendentes da célula particular que se formou quando um óvulo de sua mãe se uniu com um espermatozóide afeiçoado por ele. A ciência já sabe que o óvulo se relaciona com os espermatozóides que se aproximam dele e libera determinadas substâncias que amolecem a área de seu próprio envólucro que está justamente diante do espermatozóide pelo qual também se afeiçoou, selecionou.
Ou seja, o Princípio Feminino participa ativamente da concepção (3), ao contrário do que fala a versão patriarcal/machista ao exaltar aquele "único e bravo" que venceu, "por si só", todos os outros, e "penetrou" na "passiva fêmea"…
A comunicação entre estes opostos complementares, a oposição-fundamento Yin e Yang, é a origem de você, que me lê agora. E mais: você continua a ser e sempre será apenas relação, como fostes na origem. Uma origem que não está no passado. Que está agora, em cada célula sua, em cada percepção sua à palavra que falo, em cada gesto no qual escrevo para você.
A doença, portanto, é a desconexão. É a perda da memória da Origem, esta que se manifesta na Ancestralidade. A Origem é assim esquecida e fica mentalmente separada do Ser Humano, que se pensa independente dela, de forma absoluta e última: Natureza separada de Cultura, Homem separado de Mulher, Vitória separada de Derrota.
É por isto que "ser vitorioso" é dominar, humilhar, abandonar o outro, excluí-lo, para pateticamente querer cuidar "apenas de si", como se isso fosse possível. Como uma criança congelada na fase do "quero-porque-quero", quando pensa existir sozinha…
As estatísticas da violência e da miséria de todas as ordens estão aí para comprovar este estado atual de infância generalizada (4). Que é exatamente o contrário da experiência de comunicação, da experiência de saúde, da experiência de democracia, aquela que ocorre entre, na relação efetiva entre células, orgãos, pessoas, culturas, civilizações (5).
Doença é a não-comunicação
Por isso o Dr. Hélio Holperin vê em seu trabalho com a homeopatia a "relação íntima entre a doença, que é um comportamento celular, e o comportamento humano, que é o reflexo do nível de consciência de quem adoece" (6).
Hoje, uma simples Olimpíada escolar existe apenas pela idéia de que poucos vão ganhar o "melhor" e a maioria vai ficar na pior, à espera de um dia ser "vitoriosa".
Essa é uma péssima e sintomática pedagogia, que nos faz entender o ódio de uma torcida contra a outra, de uma corporação contra a outra, de uma religião contra a outra, enfim o ódio entre crianças, entre alunos, alunos e professores, pessoas, partidos, classes, religiões, corporações, traficantes, mendigos, amantes, e mesmo, de forma muitas vezes surda, amigos e familiares.
É preciso que entendamos, se queremos estados mentais não-violentos (a cura) que a oposição é, sim, própria da Vida. E que ela exige que o indivíduo (o sujeito do ponto de vista ocidental) se afirme, como cada um de nossos ancestrais se afirmou para que estivéssemos aqui vivos. Mas trata-se de uma afirmação que não se faz na exclusão e supressão do Outro. Exclusão e supressão que é a violência. A doença. Sua origem? A perda do sentido de Unidade (7).
Por isso, a re-incorporação da Ancestralidade, através de metodologia própria para a lembrança mental e corporal, é o remédio que restabelece o vigor das redes que são as nossas famílias internas (celulares, orgânicas, emocionais, mentais, energéticas, enfim Chi manifesto) e nossas famílias externas (consanguinidade, vizinhança, comunidades, organizações, instâncias do Estado, corporações econômicas, mídia).
Como se sabe, a maneira mais eficaz de avaliar a justiça e a bondade de um reino continua a mesma recomendada pelo clássico da mutação I Ching (8) e que, entendo, podemos aplicar também na avaliação do reino do corpo: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. Se os estados mentais do sujeito se movimentam em acordo ou desacordo com as qualidades formais e sensíveis dos orgãos.
A doença é portanto realmente falta de comunicação, como percebemos Dr. Raimundo Sokaku e eu nos anos 80, em uma de nossas sempre longas conversas a respeito das relações entre a Tradição e o vigor de uma Cultura de Saúde. Hoje, eu sustento que doença é a não-comunicação, na medida em que compreendida a lição de cada uma das doenças, ou seja as virtudes que precisam ser aprendidas, elas deixam de ser doença como maldição e passam a ser simplesmente irmãs, misericordiosa revelação dos ensinamentos que vêm da face mortal de nossa Mãe.
Na última greve de fome de sua vida, Mahatma Gandhi tinha 78 anos. Era janeiro de 1948, aquele herói lutava pela Paz na Índia e no Paquistão, dilacerados, divididos e "independentizados". Aqueles que o iriam assassinar já tinham chegado a Nova Delhi. Cuidar do Mahatma era uma tarefa difícil, pois ele estava quase à morte, à beira da coma total.
Os representantes máximos de todas as forças políticas e religiosas decisivas da Índia e do Paquistão, e mesmo a do ex-Vice-Rei do Império das Índias -então já Governador-Geral da Índia e do Paquistão- estavam a sua cabeceira, convocados por ele a se entenderem. Sob a pena de Gandhi se entregar deliberadamente à Morte.
Pois bem, tratava-se do destino de 400 milhões de seres humanos, e se ele estava no fiel da balança, era por estar focado na não-violência, no respeito à totalidade, na honra à Ancestralidade que exige a tolerância, o diálogo, o respeito mútuo, o encontro da semelhança que re-une os irmãos e as irmãs. Re-une a dispersa família.
Mesmo tendo uma magnitude que palidamente se percebe após centenas de páginas e muita meditação, Gandhi (9), a Grande Alma (este é o significado de Mahatma), apresentou bruscas crises de desespero -em momentos de muita intimidade- diante de alguns minutos de atraso na chegada de um item vital em seu código de higiene. Contrito com seu próprio paradoxo, assim ensinou: "Não nos tornamos verdadeiramente conscientes de nossas imperfeições (…) senão atravessando uma prova como o jejum" (10).
A vitória da ascendência sobre si,
pelo exercício da memória de quem se é
A questão é que aquele que se reconhece como indivíduo, e começa a se instalar de forma densa quando o cordão umbilical é cortado, necessariamente precisa se reconhecer como responsável por si mesmo. E isso dá medo. E mais, dá pânico. Um pânico aterrador. "Estou sozinho" é um estado mental muito próximo ao de "fui abandonado", quando a Mãe é maldita. Agora vejam! O estado emocional (aqui o mesmo que estado mental) relacionado com o Rim é exatamente o medo, o pânico.
Portanto o Rim nos fala que é para vencermos este medo infantil, que nos faz querer controlar compulsivamente o mundo, e que cresce até se tornar pânico generalizado, este estado mental que caracteriza os dias atuais, com sua violência, guerra, miséria e terror. Entre o Nascimento dado e a invernal e escura Morte certa, o ser humano tem muitas razões para ter medo e pânico, mas trata-se de um estado mental superável.
Neste sentido, nossos ancestrais chineses nos ensinam que a virtude relacionada ao rim é a força de vontade. Exatamente a qualidade necessária para superar o pânico e construir estados mentais não-violentos.
Com honestidade, sinceridade e integridade (atitudes recomendadas pelo Dr. Hélio como favorecedoras do Rim e Vias Urinárias [11]) precisamos manter na mente os ensinamentos da Ancestralidade. Esta chama que seria a de uma olimpíada adequada ao Terceiro Milênio: aquela em que se busca a vitória sobre o estado bárbaro que está dentro de cada um de nós (12); a vitória da ascendência sobre si, pelo exercício da memória de quem se é.
O ensinamento esquecido do Umbigo:
a memória dos Tempos e da Eternidade
Nossos umbigos são a maior lição evidente de ancestralidade que temos inscrita em nossos corpos. Tão devocionalmente interessados e crentes na "potência" libertadora e criadora do ciberespaço por si mesmo, esquecemos de olhar para o nosso próprio umbigo e vê-lo como a tomada de conexão da rede da ancestralidade.
Esta rede que nos pluga à nossa mãe e pai, às mães e aos pais deles, e mais uma vez às mães e aos pais daqueles, e também, e dos outros mais, fios de hereditariedade que se encontram na memória dos tempos. Exatamente esta genealogia que precisamos ter em mente, e que ultrapassa a história humana e mergulha –na mesma proporção em que mergulhamos em nossos corpos os alimentos, a água e o ar- na inexorável e determinante história biológica da Vida e do Universo.
Podemos entender que o Umbigo, ao contrário de nos inspirar apenas como egoístas, em verdade nos lembra da Mãe e esta do Pai, e este da Mãe, e enfim, e por começo, do Colar da Ancestralidade. Como o formado pelo oceano, praias e rios de hoje e de ontem nos quais repousam todos os grãos de areia. Como nós, humanos, queremos repousar dinamicamente em nossos corpos, em todas as nossas relações, por todas as nossas relações.
Escutemos então neste Inverno a voz da Ancestralidade, da qual a Voz Indígena (13) nos fala de forma tão privilegiada. Pois ela é a nossa própria voz. A voz das verdades necessárias a cada um de nós e que só se revelam na medida exata de nosso esforço disciplinado. Do esforço de aprender a medicina -usando uma expressão indígena norte-americana- do Inverno. Deste Inverno não apenas no sentido do Ciclo Anual, mas também, e sobretudo, no sentido de Inverno Civilizatório, pois com certeza os ventos que ventam na epopéica Civilização Ocidental são agora invernais e escuros. Este é a aventura que se oferece a nós.
Notas
1. Tema apresentado no debate promovido pelo Serviço de Reabilitação da Polícia Federal/RJ, em 27.08.2004, a respeito da atual condição masculina, a partir das questões do filme Beleza Americana, que encerrou da série de dez encontros do projeto Reflexão para Homens da Polícia Federal. Faziam também parte da mesa (sob a responsabilidade do coordenador do referido Serviço, Sr. João Paulo Bezerra do Nascimento, agente da Polícia Federal, fisioterapeuta, acupunturista, e do Dr. Luiz dos Santos, psicológo): o Dr. Sebastião Luiz Rodrigues Moreira, homeopata, agente da Polícia Federal e presidente do Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro; e o Dr. Philippe Bandeira de Mello, psicólogo yunguiano e transpessoal.
2. Ver MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. 2001. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Palas Athena, São Paulo.
3. WILHEIM, Joanna. 2002. O que é psicologia pré-natal. Casa do Psicólogo. p.25
4. Refiro-me ao conceito de Lacan.
5. Ver OURIQUES, Evandro Vieira (org.). 2003. Diálogo entre as civilizações: a experiência brasileira. ONU, Rio de Janeiro. Apoio institucional UNESCO, Viva Rio, MIR/ISER, CETCC/ECO/UFRJ e Associação Palas Athena. Este livro está disponível para download gratuito em www.unicrio.org.br, Biblioteca.
6.HOLPERIN, Hélio. 1999. A cura pelas virtudes, um redimensionamento da saúde e da cura. Pensamento, São Paulo. p.8
7. Ver OURIQUES, Evandro Vieira. 2002. Como o ser humano voltou ao lugar de onde nunca saiu: a Unidade Sagrada. In www.uri.org/rio2002, Ciclo Preparatório da Assembléia Global da United Religions Initiative, Mesa-Redonda Os Imperativos Ecológicos e a Mobilização da Sociedade. URI, Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e Viva Rio.
8. Ver JULLIEN, François. 1997. Figuras da imanência: para uma leitura do I Ching, o clássico da mutação. Editora 34, Rio de Janeiro.
9. Sobre o papel transmutador da entrega com propósito, é muito importante compreender a questão da ação desinteressada. Ler, p.ex.: OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. Gandhi e a ética na mídia. In http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=291ASP021
10. LAPIERRE, Dominique e COLLINS. Larry. 1976. Esta noite a liberdade. Círculo do Livro, São Paulo. p.478. Trata-se de longo e muito interessante trabalho, apesar de mostrar-se escrito sob uma forte ótica européia e sobretudo pró-inglesa. No entanto, tendo em vista o reconhecimento que Gandhi faz em sua autobiografia de outras dificuldades pessoais, registro esta citação por ela exemplicar bem o caráter titânico da luta pela ascendência sobre si.
11. HOLPERIN. 1999:49
12. Refiro-me à expressão do sociólogo francês Michel Maffesoli: ver seu livro A razão sensível. 2001. Editora Vozes, Petrópolis.
13. Ler OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. A Voz Indígena. In http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91.
(escrito para a minha intervenção no trabalho Inverno-Ciclo das Estações pela Medicina Chinesa Antiga, dirigido pela Dra. Rose Souza, em 04.08.2004, na Associação Brasileira de Arte e Ciência Oriental, Rio de Janeiro, dirigida pelo Dr. Raimundo Sohaku)
Quando me perguntam "Como cuido de mim ou de minha organização?", recomendo a construção de estados mentais não-violentos. Neste Inverno, a Dra. Rose Souza chama a atenção, em seu reconhecido trabalho, que esta Estação é, para a medicina chinesa antiga, o Tempo do Rim e da Bexiga. E que no Rim está armazenada a Ancestralidade, esta questão decisiva em minha vida e trabalho.
A construção de estados mentais não-violentos, o mesmo que estado de saúde, depende de que tenhamos nossa mente focada nos ensinamentos que advêm do fato concreto –inarredavelmente científico- de que temos ancestrais e que nossa interdependência para com eles precisa ser levada em conta. O que demanda um grande esforço, pois a economia psíquica pós-moderna se organiza ao redor da antecipação do futuro, ou seja, do que vem depois, do próximo objeto, da próxima conquista (seja de uma pessoa que assim se torna um objeto ou de qualquer outro objeto de consumo).
Recentemente quando estive na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro (1) para falar a respeito das relações entre a não-violência mental e a saúde psíquica e social, uma especialista presente comentou um fato extremamente sintomático. O Hospital da Aeronáutica/RJ -o antigo e belo Hospital Alemão, situado no Rio Comprido e entregue ao Governo Federal em 1942- passou recentemente por uma reforma de "modernização" e a pedra fundamental daquele histórico prédio simplesmente sumiu. Ninguém sabe onde está o fundamento. Não é à toa que a medicina alopata trabalha apenas o sintoma e desconhece a origem causal, pois ela só pode ser encontrada sempre a partir do passado, do fundamento.
Ao contrário desta tendência cada vez mais intensa hoje de valorizar apenas o "novo", a ciência prova exaustivamente que é apenas graças aos nossos ancestrais que temos existência. Graças à árvore da qual somos fruto: tanto a árvore genealógica mais diretamente humana, nossos ancestrais pré-históricos, quanto aos nossos impensáveis ancestrais biológicos, celulares. Recentemente o estudo do genoma humano, por exemplo, nos revelou insuspeitos e íntimos parentescos nossos com certos animais como o rato…
Cientificamente, somos uma grande família. Como seres vivos e como seres sociais, nós somos descendentes -por reprodução- não apenas de nossos antepassados humanos, como dito, mas, muito além, de ancestrais não-humanos e por isso muito diferentes e que remontam há mais de três bilhões de anos. As células eucariontes, por exemplo, que compõem a totalidade dos corpos humanos, surgiram por volta de dois a dois bilhões de meio de anos atrás…
Todas as nossas células são descendentes, igualmente por reprodução, da célula particular que se formou quando um óvulo se uniu com um espermatozóide e nos deu origem (2). Não levamos em conta esta realidade em cada uma de nossas decisões, por exemplo. E é assim que ficamos doentes, desmemoriados do que somos.
Todas as células de um indivíduo são portanto descendentes da célula particular que se formou quando um óvulo de sua mãe se uniu com um espermatozóide afeiçoado por ele. A ciência já sabe que o óvulo se relaciona com os espermatozóides que se aproximam dele e libera determinadas substâncias que amolecem a área de seu próprio envólucro que está justamente diante do espermatozóide pelo qual também se afeiçoou, selecionou.
Ou seja, o Princípio Feminino participa ativamente da concepção (3), ao contrário do que fala a versão patriarcal/machista ao exaltar aquele "único e bravo" que venceu, "por si só", todos os outros, e "penetrou" na "passiva fêmea"…
A comunicação entre estes opostos complementares, a oposição-fundamento Yin e Yang, é a origem de você, que me lê agora. E mais: você continua a ser e sempre será apenas relação, como fostes na origem. Uma origem que não está no passado. Que está agora, em cada célula sua, em cada percepção sua à palavra que falo, em cada gesto no qual escrevo para você.
A doença, portanto, é a desconexão. É a perda da memória da Origem, esta que se manifesta na Ancestralidade. A Origem é assim esquecida e fica mentalmente separada do Ser Humano, que se pensa independente dela, de forma absoluta e última: Natureza separada de Cultura, Homem separado de Mulher, Vitória separada de Derrota.
É por isto que "ser vitorioso" é dominar, humilhar, abandonar o outro, excluí-lo, para pateticamente querer cuidar "apenas de si", como se isso fosse possível. Como uma criança congelada na fase do "quero-porque-quero", quando pensa existir sozinha…
As estatísticas da violência e da miséria de todas as ordens estão aí para comprovar este estado atual de infância generalizada (4). Que é exatamente o contrário da experiência de comunicação, da experiência de saúde, da experiência de democracia, aquela que ocorre entre, na relação efetiva entre células, orgãos, pessoas, culturas, civilizações (5).
Doença é a não-comunicação
Por isso o Dr. Hélio Holperin vê em seu trabalho com a homeopatia a "relação íntima entre a doença, que é um comportamento celular, e o comportamento humano, que é o reflexo do nível de consciência de quem adoece" (6).
Hoje, uma simples Olimpíada escolar existe apenas pela idéia de que poucos vão ganhar o "melhor" e a maioria vai ficar na pior, à espera de um dia ser "vitoriosa".
Essa é uma péssima e sintomática pedagogia, que nos faz entender o ódio de uma torcida contra a outra, de uma corporação contra a outra, de uma religião contra a outra, enfim o ódio entre crianças, entre alunos, alunos e professores, pessoas, partidos, classes, religiões, corporações, traficantes, mendigos, amantes, e mesmo, de forma muitas vezes surda, amigos e familiares.
É preciso que entendamos, se queremos estados mentais não-violentos (a cura) que a oposição é, sim, própria da Vida. E que ela exige que o indivíduo (o sujeito do ponto de vista ocidental) se afirme, como cada um de nossos ancestrais se afirmou para que estivéssemos aqui vivos. Mas trata-se de uma afirmação que não se faz na exclusão e supressão do Outro. Exclusão e supressão que é a violência. A doença. Sua origem? A perda do sentido de Unidade (7).
Por isso, a re-incorporação da Ancestralidade, através de metodologia própria para a lembrança mental e corporal, é o remédio que restabelece o vigor das redes que são as nossas famílias internas (celulares, orgânicas, emocionais, mentais, energéticas, enfim Chi manifesto) e nossas famílias externas (consanguinidade, vizinhança, comunidades, organizações, instâncias do Estado, corporações econômicas, mídia).
Como se sabe, a maneira mais eficaz de avaliar a justiça e a bondade de um reino continua a mesma recomendada pelo clássico da mutação I Ching (8) e que, entendo, podemos aplicar também na avaliação do reino do corpo: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. Se os estados mentais do sujeito se movimentam em acordo ou desacordo com as qualidades formais e sensíveis dos orgãos.
A doença é portanto realmente falta de comunicação, como percebemos Dr. Raimundo Sokaku e eu nos anos 80, em uma de nossas sempre longas conversas a respeito das relações entre a Tradição e o vigor de uma Cultura de Saúde. Hoje, eu sustento que doença é a não-comunicação, na medida em que compreendida a lição de cada uma das doenças, ou seja as virtudes que precisam ser aprendidas, elas deixam de ser doença como maldição e passam a ser simplesmente irmãs, misericordiosa revelação dos ensinamentos que vêm da face mortal de nossa Mãe.
Na última greve de fome de sua vida, Mahatma Gandhi tinha 78 anos. Era janeiro de 1948, aquele herói lutava pela Paz na Índia e no Paquistão, dilacerados, divididos e "independentizados". Aqueles que o iriam assassinar já tinham chegado a Nova Delhi. Cuidar do Mahatma era uma tarefa difícil, pois ele estava quase à morte, à beira da coma total.
Os representantes máximos de todas as forças políticas e religiosas decisivas da Índia e do Paquistão, e mesmo a do ex-Vice-Rei do Império das Índias -então já Governador-Geral da Índia e do Paquistão- estavam a sua cabeceira, convocados por ele a se entenderem. Sob a pena de Gandhi se entregar deliberadamente à Morte.
Pois bem, tratava-se do destino de 400 milhões de seres humanos, e se ele estava no fiel da balança, era por estar focado na não-violência, no respeito à totalidade, na honra à Ancestralidade que exige a tolerância, o diálogo, o respeito mútuo, o encontro da semelhança que re-une os irmãos e as irmãs. Re-une a dispersa família.
Mesmo tendo uma magnitude que palidamente se percebe após centenas de páginas e muita meditação, Gandhi (9), a Grande Alma (este é o significado de Mahatma), apresentou bruscas crises de desespero -em momentos de muita intimidade- diante de alguns minutos de atraso na chegada de um item vital em seu código de higiene. Contrito com seu próprio paradoxo, assim ensinou: "Não nos tornamos verdadeiramente conscientes de nossas imperfeições (…) senão atravessando uma prova como o jejum" (10).
A vitória da ascendência sobre si,
pelo exercício da memória de quem se é
A questão é que aquele que se reconhece como indivíduo, e começa a se instalar de forma densa quando o cordão umbilical é cortado, necessariamente precisa se reconhecer como responsável por si mesmo. E isso dá medo. E mais, dá pânico. Um pânico aterrador. "Estou sozinho" é um estado mental muito próximo ao de "fui abandonado", quando a Mãe é maldita. Agora vejam! O estado emocional (aqui o mesmo que estado mental) relacionado com o Rim é exatamente o medo, o pânico.
Portanto o Rim nos fala que é para vencermos este medo infantil, que nos faz querer controlar compulsivamente o mundo, e que cresce até se tornar pânico generalizado, este estado mental que caracteriza os dias atuais, com sua violência, guerra, miséria e terror. Entre o Nascimento dado e a invernal e escura Morte certa, o ser humano tem muitas razões para ter medo e pânico, mas trata-se de um estado mental superável.
Neste sentido, nossos ancestrais chineses nos ensinam que a virtude relacionada ao rim é a força de vontade. Exatamente a qualidade necessária para superar o pânico e construir estados mentais não-violentos.
Com honestidade, sinceridade e integridade (atitudes recomendadas pelo Dr. Hélio como favorecedoras do Rim e Vias Urinárias [11]) precisamos manter na mente os ensinamentos da Ancestralidade. Esta chama que seria a de uma olimpíada adequada ao Terceiro Milênio: aquela em que se busca a vitória sobre o estado bárbaro que está dentro de cada um de nós (12); a vitória da ascendência sobre si, pelo exercício da memória de quem se é.
O ensinamento esquecido do Umbigo:
a memória dos Tempos e da Eternidade
Nossos umbigos são a maior lição evidente de ancestralidade que temos inscrita em nossos corpos. Tão devocionalmente interessados e crentes na "potência" libertadora e criadora do ciberespaço por si mesmo, esquecemos de olhar para o nosso próprio umbigo e vê-lo como a tomada de conexão da rede da ancestralidade.
Esta rede que nos pluga à nossa mãe e pai, às mães e aos pais deles, e mais uma vez às mães e aos pais daqueles, e também, e dos outros mais, fios de hereditariedade que se encontram na memória dos tempos. Exatamente esta genealogia que precisamos ter em mente, e que ultrapassa a história humana e mergulha –na mesma proporção em que mergulhamos em nossos corpos os alimentos, a água e o ar- na inexorável e determinante história biológica da Vida e do Universo.
Podemos entender que o Umbigo, ao contrário de nos inspirar apenas como egoístas, em verdade nos lembra da Mãe e esta do Pai, e este da Mãe, e enfim, e por começo, do Colar da Ancestralidade. Como o formado pelo oceano, praias e rios de hoje e de ontem nos quais repousam todos os grãos de areia. Como nós, humanos, queremos repousar dinamicamente em nossos corpos, em todas as nossas relações, por todas as nossas relações.
Escutemos então neste Inverno a voz da Ancestralidade, da qual a Voz Indígena (13) nos fala de forma tão privilegiada. Pois ela é a nossa própria voz. A voz das verdades necessárias a cada um de nós e que só se revelam na medida exata de nosso esforço disciplinado. Do esforço de aprender a medicina -usando uma expressão indígena norte-americana- do Inverno. Deste Inverno não apenas no sentido do Ciclo Anual, mas também, e sobretudo, no sentido de Inverno Civilizatório, pois com certeza os ventos que ventam na epopéica Civilização Ocidental são agora invernais e escuros. Este é a aventura que se oferece a nós.
Notas
1. Tema apresentado no debate promovido pelo Serviço de Reabilitação da Polícia Federal/RJ, em 27.08.2004, a respeito da atual condição masculina, a partir das questões do filme Beleza Americana, que encerrou da série de dez encontros do projeto Reflexão para Homens da Polícia Federal. Faziam também parte da mesa (sob a responsabilidade do coordenador do referido Serviço, Sr. João Paulo Bezerra do Nascimento, agente da Polícia Federal, fisioterapeuta, acupunturista, e do Dr. Luiz dos Santos, psicológo): o Dr. Sebastião Luiz Rodrigues Moreira, homeopata, agente da Polícia Federal e presidente do Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro; e o Dr. Philippe Bandeira de Mello, psicólogo yunguiano e transpessoal.
2. Ver MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. 2001. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Palas Athena, São Paulo.
3. WILHEIM, Joanna. 2002. O que é psicologia pré-natal. Casa do Psicólogo. p.25
4. Refiro-me ao conceito de Lacan.
5. Ver OURIQUES, Evandro Vieira (org.). 2003. Diálogo entre as civilizações: a experiência brasileira. ONU, Rio de Janeiro. Apoio institucional UNESCO, Viva Rio, MIR/ISER, CETCC/ECO/UFRJ e Associação Palas Athena. Este livro está disponível para download gratuito em www.unicrio.org.br, Biblioteca.
6.HOLPERIN, Hélio. 1999. A cura pelas virtudes, um redimensionamento da saúde e da cura. Pensamento, São Paulo. p.8
7. Ver OURIQUES, Evandro Vieira. 2002. Como o ser humano voltou ao lugar de onde nunca saiu: a Unidade Sagrada. In www.uri.org/rio2002, Ciclo Preparatório da Assembléia Global da United Religions Initiative, Mesa-Redonda Os Imperativos Ecológicos e a Mobilização da Sociedade. URI, Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e Viva Rio.
8. Ver JULLIEN, François. 1997. Figuras da imanência: para uma leitura do I Ching, o clássico da mutação. Editora 34, Rio de Janeiro.
9. Sobre o papel transmutador da entrega com propósito, é muito importante compreender a questão da ação desinteressada. Ler, p.ex.: OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. Gandhi e a ética na mídia. In http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=291ASP021
10. LAPIERRE, Dominique e COLLINS. Larry. 1976. Esta noite a liberdade. Círculo do Livro, São Paulo. p.478. Trata-se de longo e muito interessante trabalho, apesar de mostrar-se escrito sob uma forte ótica européia e sobretudo pró-inglesa. No entanto, tendo em vista o reconhecimento que Gandhi faz em sua autobiografia de outras dificuldades pessoais, registro esta citação por ela exemplicar bem o caráter titânico da luta pela ascendência sobre si.
11. HOLPERIN. 1999:49
12. Refiro-me à expressão do sociólogo francês Michel Maffesoli: ver seu livro A razão sensível. 2001. Editora Vozes, Petrópolis.
13. Ler OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. A Voz Indígena. In http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91.
Sobre a Ação Desinteressada em Gandhi e a Ética na Mídia
Artigo de Evandro Vieira Ouriques
(Publicado em vários sites, entre eles Observatório da Imprensa, Consciencia.net, Revista NovaE, Comunique-se
Recentemente, em uma conhecida lista de discussão a respeito de éticae mídia, alguém qualificou Mahatma Gandhi e Dom Hélder Câmara de"falsos profetas", chegando a esta conclusão inquietante, e sintomática como procurarei mostrar, apenas avaliando dois pensamentos destes homens, que haviam sido gentilmente postados na lista por outra pessoa.
Dom Hélder foi considerado "falso profeta" por ter dito algum dia que "o segredo para ser e permanecer sempre jovem, mesmo quando o peso dos anos castiga o corpo, é ter uma causa a que dedicar a vida". Isto foi considerado um sofisma, pois para se viver se precisaria saúde, e em relação a se ter uma causa para isto, foi recomendado cuidado, pois Hitler também "tinha, e bem definida, uma causa". Por sua vez, o crime de Gandhi foi ter dito, também um dia, que "a satisfação está no esforço e não no resultado final". Esse princípio, central no pensamento gandhiano, foi considerado uma "falácia", pois "em qualquer atividade o importante é o resultado".
Eles foram assim sumariamente julgados e condenados em exatas 57 palavras, incluindo a assinatura da mensagem a qual analiso: tanto Gandhi, o homem prático que recusou os modelos simplificadores e criou uma ética operacional política que libertou os "intocáveis" e a Índia por meios não-violentos, fundando assim um novo regime político e um Estado, e pondo a pá-de-cal no Império Britânico; quanto Dom Hélder, o ganhador do exigente Prêmio Popular da Paz, defensor enérgico da Teologia da Libertação e da Não-violência durante a sombria Ditadura Militar brasileira.
Reflitamos um pouco sobre este caso. O que Gandhi -que nunca foi profeta, quanto mais falso- fez ao falar do desapego em relação ao resultado das ações, é negar o produtivismo, essa mentalidade doentia que, hoje de forma ainda mais intensa do que nos dias gandhianos, sincroniza os aspectos sombrios do capitalismo tardio com a irreferência da pós-modernidade, paradoxalmente referenciada no "livre" exercício de quaisquer desejos, cuja legitimidade é apenas a de sentí-los, e no dinheiro como equivalente geral, como Marx o denominava.
O que está em vigência hoje, sabe-se, é a mercantilização absoluta das relações, quando nos obrigamos a calcular o lucro que cada ação e cada relação nossa nos trará, para que o acumulemos, como se isto fosse felicidade. É esta mentalidade, precisamente, que fez com que a cultura de comunicação fosse sucedida pela atual cultura da informação, pois a experiência de comunicação é aquela da ordem da diferença, e portanto, aquela que se produz apenas no entre, nas relações.
A cultura da informação, ao contrário, é exatamente a que se constrói no dirigir-se a, ou seja, é aquela a qual só interessam os resultados da atividade, que serão obtidos junto à audiência pela transmissão da informação dirigida a ela, da maneira a "mais eficaz possível". É daí que temos a cultura da eficácia, do produtivismo, e o entendimento da Comunicação não como communication mas apenas como communications, ou seja, apenas como meios de comunicação, meios de persuasão. (Im)puro convencimento.
Lembramos como esta perspectiva interessa ao sistema, já que é ela que o sustenta ao garantir o esquecimento da experiência -sempre livre e desinteressada- da comunicação (pois nunca podemos saber onde as conversações nos levam) em prol da ação interessada no mundo, da transformação do mundo em mercado, do sujeito em consumidor e do pensante em idiota, seja lá qual for a cor de sua pele.
Gandhi fala exatamente do oposto. Ele não age porque vai ganhar alguma com isso no sentido vulgar. Ele age porque este comportamento é da ordem da ética. É ético. E por ser ético, basta a si próprio, não necessitando de nenhum resultado "objetivo".
Se alguém está entendendo estas rápidas considerações como mera divagação, o que é compreensível pela falta de hábito capitalista e pós-moderno de pensar, ainda mais com vagar, sublinho que do ponto de vista o mais pragmático que seja, é através do desapego dos resultados da ação que podemos eliminar, por exemplo, a correspondente frustação e depressão -um dos padrões psiquícos mais presentes na humanidade hoje- que teremos que incorporar e administrar se vivemos na expectativa do reconhecimento alheio para cada atitude nossa.
Generosidade é outro nome deste desapego, que certamente é da ordem da solidariedade, aquela a qual o Forum Social Mundial, por exemplo, tanto se refere quando examina se um outro mundo é possível, ou nós quando trabalhamos para saber se uma outra comunicação é possível. Ou, a rigor, se a experiência de comunicação ainda é possível.
A precipitação deste julgamento infeliz me faz lembrar de todos os meus próprios julgamentos infelizes, que acabaram por me convencer, inclusive a partir do exemplo de pessoas extraordinárias como Gandhi e Dom Hélder, que se queremos ética, e consequentemente ética na mídia, devemos avaliar sempre de maneira profunda e vagarosa tudo o que se apresenta, começando por nossos desejos e idéias, pois, como se sabe, a superficialidade promovida pela velocidade extrema é exatamente pilar da cultura tecno-lógica. E acabamos sendo pensados e sendo sentidos pelo discurso que nos atravessa e que, pelo hábito e pela "objetividade apressada" em obter resultados com nossas atividades, terminamos tragicamente acreditando ser nosso.
Neste sentido, em relação a Gandhi, por exemplo, sugiro para os que querem superar o jugo do Império Americano ("o estado de espírito bárbaro está em cada um de nós", citando Maffesoli), a leitura de O caminho é a meta, Gandhi hoje, de Johan Galtung (Editora Palas Athena, 2003). Ele é o pioneiro e renomado cientista social especialista em estudos para a paz e teoria dos conflitos, que atua nas universidades do Havaí, de Witten/Herdecke, de Tromsoe e na Universidade Européia da Paz, e fundador da Transcend (transcend.org), e que já trabalhava pela paz na década de 70.
O que Gandhi fez, em essência, foi constituir uma moral pelo exemplo, aplicando à sua própria vida as reformas que pregou e conclamando os cidadãos a demonstrarem a capacidade política de se governarem, através do exercício diário do auto-domínio, estimulando o outro, através do exemplo, a modificar o seu comportamento: lutando, portanto, primeiro contra si próprio para dominar-se em relação à série infantil eu-quero-porque-quero (a lógica da sociedade de consumo) e dessa forma ganhar ascendência sobre si, a maneira, aí sim, mais eficaz de nos livrarmos da obsessão do poder.
(Publicado em vários sites, entre eles Observatório da Imprensa, Consciencia.net, Revista NovaE, Comunique-se
Recentemente, em uma conhecida lista de discussão a respeito de éticae mídia, alguém qualificou Mahatma Gandhi e Dom Hélder Câmara de"falsos profetas", chegando a esta conclusão inquietante, e sintomática como procurarei mostrar, apenas avaliando dois pensamentos destes homens, que haviam sido gentilmente postados na lista por outra pessoa.
Dom Hélder foi considerado "falso profeta" por ter dito algum dia que "o segredo para ser e permanecer sempre jovem, mesmo quando o peso dos anos castiga o corpo, é ter uma causa a que dedicar a vida". Isto foi considerado um sofisma, pois para se viver se precisaria saúde, e em relação a se ter uma causa para isto, foi recomendado cuidado, pois Hitler também "tinha, e bem definida, uma causa". Por sua vez, o crime de Gandhi foi ter dito, também um dia, que "a satisfação está no esforço e não no resultado final". Esse princípio, central no pensamento gandhiano, foi considerado uma "falácia", pois "em qualquer atividade o importante é o resultado".
Eles foram assim sumariamente julgados e condenados em exatas 57 palavras, incluindo a assinatura da mensagem a qual analiso: tanto Gandhi, o homem prático que recusou os modelos simplificadores e criou uma ética operacional política que libertou os "intocáveis" e a Índia por meios não-violentos, fundando assim um novo regime político e um Estado, e pondo a pá-de-cal no Império Britânico; quanto Dom Hélder, o ganhador do exigente Prêmio Popular da Paz, defensor enérgico da Teologia da Libertação e da Não-violência durante a sombria Ditadura Militar brasileira.
Reflitamos um pouco sobre este caso. O que Gandhi -que nunca foi profeta, quanto mais falso- fez ao falar do desapego em relação ao resultado das ações, é negar o produtivismo, essa mentalidade doentia que, hoje de forma ainda mais intensa do que nos dias gandhianos, sincroniza os aspectos sombrios do capitalismo tardio com a irreferência da pós-modernidade, paradoxalmente referenciada no "livre" exercício de quaisquer desejos, cuja legitimidade é apenas a de sentí-los, e no dinheiro como equivalente geral, como Marx o denominava.
O que está em vigência hoje, sabe-se, é a mercantilização absoluta das relações, quando nos obrigamos a calcular o lucro que cada ação e cada relação nossa nos trará, para que o acumulemos, como se isto fosse felicidade. É esta mentalidade, precisamente, que fez com que a cultura de comunicação fosse sucedida pela atual cultura da informação, pois a experiência de comunicação é aquela da ordem da diferença, e portanto, aquela que se produz apenas no entre, nas relações.
A cultura da informação, ao contrário, é exatamente a que se constrói no dirigir-se a, ou seja, é aquela a qual só interessam os resultados da atividade, que serão obtidos junto à audiência pela transmissão da informação dirigida a ela, da maneira a "mais eficaz possível". É daí que temos a cultura da eficácia, do produtivismo, e o entendimento da Comunicação não como communication mas apenas como communications, ou seja, apenas como meios de comunicação, meios de persuasão. (Im)puro convencimento.
Lembramos como esta perspectiva interessa ao sistema, já que é ela que o sustenta ao garantir o esquecimento da experiência -sempre livre e desinteressada- da comunicação (pois nunca podemos saber onde as conversações nos levam) em prol da ação interessada no mundo, da transformação do mundo em mercado, do sujeito em consumidor e do pensante em idiota, seja lá qual for a cor de sua pele.
Gandhi fala exatamente do oposto. Ele não age porque vai ganhar alguma com isso no sentido vulgar. Ele age porque este comportamento é da ordem da ética. É ético. E por ser ético, basta a si próprio, não necessitando de nenhum resultado "objetivo".
Se alguém está entendendo estas rápidas considerações como mera divagação, o que é compreensível pela falta de hábito capitalista e pós-moderno de pensar, ainda mais com vagar, sublinho que do ponto de vista o mais pragmático que seja, é através do desapego dos resultados da ação que podemos eliminar, por exemplo, a correspondente frustação e depressão -um dos padrões psiquícos mais presentes na humanidade hoje- que teremos que incorporar e administrar se vivemos na expectativa do reconhecimento alheio para cada atitude nossa.
Generosidade é outro nome deste desapego, que certamente é da ordem da solidariedade, aquela a qual o Forum Social Mundial, por exemplo, tanto se refere quando examina se um outro mundo é possível, ou nós quando trabalhamos para saber se uma outra comunicação é possível. Ou, a rigor, se a experiência de comunicação ainda é possível.
A precipitação deste julgamento infeliz me faz lembrar de todos os meus próprios julgamentos infelizes, que acabaram por me convencer, inclusive a partir do exemplo de pessoas extraordinárias como Gandhi e Dom Hélder, que se queremos ética, e consequentemente ética na mídia, devemos avaliar sempre de maneira profunda e vagarosa tudo o que se apresenta, começando por nossos desejos e idéias, pois, como se sabe, a superficialidade promovida pela velocidade extrema é exatamente pilar da cultura tecno-lógica. E acabamos sendo pensados e sendo sentidos pelo discurso que nos atravessa e que, pelo hábito e pela "objetividade apressada" em obter resultados com nossas atividades, terminamos tragicamente acreditando ser nosso.
Neste sentido, em relação a Gandhi, por exemplo, sugiro para os que querem superar o jugo do Império Americano ("o estado de espírito bárbaro está em cada um de nós", citando Maffesoli), a leitura de O caminho é a meta, Gandhi hoje, de Johan Galtung (Editora Palas Athena, 2003). Ele é o pioneiro e renomado cientista social especialista em estudos para a paz e teoria dos conflitos, que atua nas universidades do Havaí, de Witten/Herdecke, de Tromsoe e na Universidade Européia da Paz, e fundador da Transcend (transcend.org), e que já trabalhava pela paz na década de 70.
O que Gandhi fez, em essência, foi constituir uma moral pelo exemplo, aplicando à sua própria vida as reformas que pregou e conclamando os cidadãos a demonstrarem a capacidade política de se governarem, através do exercício diário do auto-domínio, estimulando o outro, através do exemplo, a modificar o seu comportamento: lutando, portanto, primeiro contra si próprio para dominar-se em relação à série infantil eu-quero-porque-quero (a lógica da sociedade de consumo) e dessa forma ganhar ascendência sobre si, a maneira, aí sim, mais eficaz de nos livrarmos da obsessão do poder.
Wednesday, 18 August 2004
Como o ser humano abandonou a Mãe Natureza e porque ele se vê obrigado a retornar ao lugar de onde nunca saiu: A Unidade Sagrada*
Artigo de Evandro Vieira Ouriques, Dr.
[Este artigo foi escrito a partir de seu livro (dirigido ao público de diálogo inter-religioso leigo em assuntos acadêmicos),
Yoga, Tradição e Ciência: um encontro revelador para os dias de hoje, publicado pelo NETCCON.ECO.UFRJ em 2001]
Precisamos compreender que a origem de toda a crise humana é apenas uma: o abandono da Mãe Natureza, por volta de 4000 a 3500 a. C.. Naquele momento, a sociedade humana teve a pacífica maneira matrifocal na qual vivia destruída por hordas bárbaras de invasores que adoravam deuses guerreiros. Eles destronaram as antigas deusas, rebaixando-as a esposas, filhas e consortes e implantaram, assim, uma nova concepção de mundo dominada pelos homens.
Este é origem da crise: o desprezo pelo Princípio Feminino. O abandono do equilíbrio entre Shiva e Shakti; entre Pai e Mãe; entre Céu e Terra; entre Yin e Yang; entre Princípio Feminino e Princípio Masculino. É por isto que a superação da dor da Humanidade depende de nosso empenho em recuperarmos esta Unidade Sagrada, da qual a unidade espiritual das religiões é espelho.
É disto que vozes minoritárias sempre falaram no Ocidente, ecoando suas próprias tradições espirituais. Mas apenas com a instalação da crise, a partir do final do século XIX, estas vozes passaram a ser mais e mais ouvidas, ecoando também, então, as tradições espirituais do Oriente. Hoje chegamos ao limite. Dez anos após a ECO-92 estamos construíndo a ECO-Espiritual que é a Assembléia Global da URI e a Aldeia Sagrada, pois para resolver a crise ecológica, em verdade, precisamos resolver a verdadeira questão que é o resgaste da Unidade.
Não é à toa que todas as avaliações feitas dos compromissos firmados na ECO-92 em relação ao desenvolvimento auto-sustentável são muito pouco animadores (1). A consciência ainda deficiente do ser humano insiste na destruição. Se abandonamos nossa Mãe como não brigarmos -até a morte- com nossos irmãos?
Para que este quadro seja revertido precisamos mais do que ouvir, no sentido estrito, a Unidade Sagrada, da qual fala de forma privilegiada, por exemplo, a Voz Indígena (2). Precisamos por a Unidade Sagrada imediatamente em prática. Vigiar, de verdade, todo o nosso comportamento para que a nossa ação possa ser testemunha viva Dela. É disto que precisamos para revelar a Paz no mundo.
A ciência mostra exatamente quando o patriarcado e a dominação masculina substituíram a ordem social mais antiga e mais harmoniosa (3). Muito mais do que mulheres em cargos de autoridade, o matriarcado significava ter o centro ético da organização psicológica e social fundado em valores culturais muito diferentes. Enquanto o patriarcado vive da imposição da lei, de uma ordem que se quer impor de for a para dentro, o matriarcado estabelece costumes, hábitos que vêm de dentro dos indíviduos para fora. Ou sejam, auto-organizatórios, porque lembram da Origem. Enquanto o patriarcado estabelece o poder militar, o matriarcado estabelece a autoridade espiritual, a autoridade ética. Enquanto o patriarcado encoraja o valor, a força e a perícia do guerreiro individual (endeusando a vitória e desprezando a derrota), a estrutura matriarcal estimula a coesão do coletivo. Valoriza não o heroísmo egóico mas a grandeza.
Realização Divina na Terra, Divina Terra
No matriarcado, a natureza e a fertilidade eram o coracão, a alma da existência. Toda a vida humana era impregnada por este diapasão. A dimensão sexual, por exemplo, era vivenciada como poder regenerativo, dádiva ou bênção do divino. A natureza sexual era inseparável da atitude espiritual. O ato sexual era oferecido à deusa, reverenciada pelo amor e pela paixão. Tratava-se de ato honroso e respeitoso, que agradava tanto à dimensão divina quanto a dimensão mortal, como vivência coesa e indistinta entre espírito e matéria. Realização divina na Terra. Tratava-se, assim, sem dúvida, de uma sociedade fundada na inseparabilidade. Na união inclusiva dos opostos complementares. E não na diáspora trágica em que vivemos hoje, em que exponenciamos sermos os perseguidores de nós mesmos, numa roda-de-fogo torturante e destrutiva.
Quando a Mãe Natureza começou a ser tratada como inimiga, separada de Mim, tratada como o Outro e não mais como o Mesmo, como ela e não mais como eu mesmo, iniciou-se a operação de esquecimento do Ser, assumindo-se a opção de que o ser humano é algo diferente dela. Algo que não pertence a ela, e que destina-se a dominá-la, subjugá-la, utilizá-la para seus próprios (do ego) interesses.
Constrói-se assim uma cultura auto-referenciada, antropocêntrica, fálica e consequentemente bélica, centrada na dominação e no uso exploratório de tudo aquilo que é nutriz, delicado, sensível, misterioso, incontrolável. É por isto que sexo só pode ser pornográfico e dinheiro só pode ser obtido por meios escusos. Todo o caráter prazeiroso e próspero da Mãe Terra, que a tudo criou, perdeu-se
Separado, em sua fantasia, de sua Mãe, o ser humano optou por uma espécie de jardim de infância retrógado, no qual mantém-se, inapropriadamente, na inconsciência da realidade de sua própria existência. Temos então esta situação paradoxal: o ser humano rejeita sua essência, rejeita Brahman, rejeita todos os nomes do Inominável, rejeita a Consciência Cósmica; e como não pode fazer isto de fato, mas apenas de maneira fantasiosa, continua a necessitar dela como necessita do ar. É daí que nasce, por exemplo, a situação patética dos engarrafamentos nas vias de saída de todas as cidades do mundo às vésperas de feriados e finais de semana. Trata-se da nostalgia dramática em relação à natureza. Da mesma forma que a obsessão sexual, quando o corpo do outro é a única presença da Natureza em meio ao estéril ambiente construído apenas com a razão.
A Fantasia da Separatividade
Como mostra Pierre Weil, "toda a história da humanidade posterior a esta queda na fantasia da separatividade, consiste em uma luta silenciosa entre duas forças: as do desejo ligado a este fantasma que leva à Neurose do Paraíso Perdido e a da nostalgia inconsciente do estado de Sabedoria primordial da Consciência Cósmica não-dual. Todos os esforços dos grandes mestres de Israel e da Humanidade, de Moisés a Cristo, passando por Salomão, os Profetas, os Essênios, e os Terapeutas descritos por Philon de Alexandria, dos Rishis do Ganges aos Budas do Tibet, das Escolas da Tradição a Krishnamurti, Sri Aurobindo, Teilhard de Chardin, René Guénon, Gurdjieff, entre outros, assim como a psicoterapia em suas linhas mais avançadas como as de Jung, Maslow e Assagioli, destinam-se a restabelecer no homem a vivência da inseparabilidade da Consciência Cósmica" (4).
Prosseguindo com Weil, "Freud, ao mostrar a existência de um inconsciente, no qual se encontram reprimidas certas pulsões instintivas fundamentais, abriu a porta para uma melhor compreensão daquilo que foi reprimido na história da humanidade. Como ele próprio diz "...a gênese das neuroses nos aparece sob a seguinte fórmula simples: o "ego" tentou abafar certas partes do "id" de uma maneira imprópria, ele malogrou e o "id" se vinga (...) sob a forma da reação patológica; é exatamente isso que Maslow nos demonstra. Neste caso, a fonte do maior sofrimento da humanidade é a repressão de tudo aquilo que estes valores intrínsecos representam: a Árvore da Vida..." (5), ou seja, a sabedoria primordial.
É o mesmo que nos diz a terceira carta do tarô, a Terceira Estação: A Imperatriz. Nas palavras de Rita Lee: "Estou no colo da Mãe Natureza. Ela toma conta da minha cabeça". É a perda deste comando que fez o mundo perder a cabeça. Nesta carta encontramos Deméter, a deusa grega da terra cultivada, em seu florido jardim, que sucedeu à deusa primordial Gaia, a Mãe Terra, uma vez que com a agricultura -o jardim florido- a Mãe Natureza começou a ter o seu papel reduzido, até ocupar apenas o lugar de matéria prima, recursos a serem utilizados para o objetivo da obtenção de lucro a qualquer custo. Segundo a cosmogonia grega, Gaia, a Terra, através de geração espontânea, dá à luz a Urano, o Céu, que é seu filho e seu amante. Das montanhas, olhando fixamente para baixo, para ela, ele fez cair a chuva fértil sobre as secretas fendas de sua mãe -sagrada eroticidade- e ela produziu grama, flores e árvores, e criou os pássaros e as feras.
Rejeitando a Mãe
As evidências recentes da arqueologia, em especial as descobertas na Europa meridional e na Turquia, comprovam que a humanidade viveu durante milhares de anos em um estado de absoluta integração com a natureza, de onde extraía o seu alimento e proteção (6). Esses primeiros habitantes do nosso planeta viviam de acordo com as leis e os ritmos da natureza e reverenciavam essa força maior através do culto à deusa Mãe. Eram as sociedades matriarcais, estruturadas em um modelo econômico de propriedade solidária das riquezas produtivas e divisão igualitária dos bens de consumo. O trabalho era para o grupo -enquanto máxima expressão do indivíduo- uma vez que o que você faz não é para você mas para os outros, para o coletivo. Karma Yoga. Nelas, os mais velhos eram respeitados exatamente por serem os depositários, os livros-vivos nos quais estava gravada a Tradição: a experienciação da vida.
Não existiam a propriedade privada, nem a neurose do ter substituindo o ser, como Erich Fromm já alertava há décadas e décadas atrás; nem as guerras de conquista, nem a dominação do homem pelo homem -aquisições culturais mais recentes da nossa história. Essas primeiras sociedades agrícolas viviam em colônias confortáveis e usualmente não-fortificadas. Produziam uma cerâmica muito elaborada. Elas eram basicamente pacíficas e não existia qualquer sistema de estratificação social.
O homem vivia em uma relação de parceria e cooperação com a mulher. As mulheres geralmente permaneciam nas aldeias recolhendo frutos e grãos e cuidando das crianças da tribo, enquanto os homens saíam em bando para caçar. Com o passar do tempo, as mulheres começaram a perceber que as sementes que caíam próximo às suas habitações faziam surgir novos pés de frutos. Estava descoberto o cultivo da agricultura, que, segundo a mitologia grega, foi revelada à mulher pela deusa do trigo, Deméter, sabemos, a Imperatriz.
As tribos de então eram predominantemente nômades e tornaram-se, por volta de 9000 a.C, sedentárias passando a ter seu sustento através da colheita agrícola. Nesses tempos eram realizados intensos e complexos rituais religiosos para garantir a fertilidade da mulher e da terra, intimamente correlacionadas.
Esses rituais geralmente aconteciam na lua cheia -apenas uma das quatro fases cíclicas da lua, como a menstruação; ao contrário da fixidez do sol, masculino, sempre cheio. É importante sublinhar, e a medicina ayurvédica tem isso como central, que se o Sol é mais constante, atravessando um ciclo de energia a cada 365 1/4 dias, e nunca estando ausente durante o dia, a Lua às vezes está cheia e brilhante e em certos momentos completamente ausente. É ela quem governa, isto a ciência reconhece há muito tempo, as marés dos oceanos, e governa também os oceanos cósmicos, estes oceanos que são as águas da existência na tradição hindu.
O Feminino Come o Masculino
É muitíssimo importante ressaltar o princípio, registrado por Joseph Campbell, "que ela (a Lua) engole o Sol no Oeste e volta a dar-lhe nascimento no Leste. E o sol atravessa o seu corpo durante a noite" (7). A metáfora tântrica é muito clara. No amor físico transcendental entre o princípio masculino e o princípio feminino é o feminino que engole, que é ativo. Como no amor tântrico, em que a mulher fica por cima, come o masculino -ao contrário da idéia comum do homem "comer" a mulher. O Sol, masculino só renasce após percorrer, por dentro, durante toda a noite, o corpo feminino. O masculino é engolido pelo que não controla, e renasce exatamente por se deixar ser engolido. Renasce por não temer o insondável. Não temer a morte.
Olhe agora as pontas de seus dedos. Veja suas impressões digitais. Não existem outras iguais em todo o mundo. De onde vêm estas perfeitas espirais, presentes nas pontas de nossos dedos, presentes nas intocáveis galáxias de incalculável grandeza? Mistério. Como a espiral do DNA. Como a espiral de Kundaliní subindo por Sushuma, unindo as polaridades de Ida e Pingala. Como a da consciência em êxtase xamânico; em estado não-comum de consciência. Diga para você mesmo, sinceramente: "el camino no se hace al caminar"? Você sabia ontem o que você seria hoje? Não é uma surpresa para nós mesmos o que somos? Não foi assim que Indiana Jones, pressionado pelo fato de seu pai estar à morte, ao pisar no abismo viu surgir sob os seus pés a ponte que até então era invisível?
Nos rituais da lua cheia -até hoje os ciganos fazem isto, como a comunidade religiosa Trybo Cósmica o faz há 23 anos ininterruptos no Rio de Janeiro sob a proteção de Seu Tranca Rua - as mulheres gozavam do status de pontífices espirituais do poder doador e mantenedor da vida da grande Deusa Mãe, pois dramatizavam concretamente em seus próprios corpos os mistérios da natureza: gestação e geração.
É importante lembrar que os homens de então não tinham consciência de seu papel biológico no processo de concepção, e atribuíam a procriação aos ciclos rítmicos da natureza refletidos nas fases da lua.
Dentro de um processo complexo, diversas variáveis atuaram no sentido da subjugação do princípio feminino e consequentemente das mulheres: o acúmulo da produção agrícola excedente permitiu que alguns grupos tornassem-se mais poderosos econômica e politicamente do que outros; o processo de fixação do homem à terra facilitou a gradativa percepção do seu papel no processo da procriação, o que gerou a reivindicação do direito de saber quem eram os "seus" filhos legítimos, a quem deixariam a sua herança material e espiritual, até então transmitida pela via matriarcal; e o hábito do pastoreio permitiu lidar com o sangue, abrindo caminho para a guerra.
A mulher, e claro, a Mãe Natureza, passou assim a ser propriedade do homem. Lembre dos bárbaros, tomando tudo e todos, a qualquer custo, para si. Sem qualquer critério. Apenas o da vontade de tomar para o próprio ego. Este é o clima. É a Queda, a Expulsão do Paraíso, o fim da Idade de Ouro. Os grupos econômicos mais poderosos, militarmente equipados, dedicados a expandir seus domínios sobre todos os que podem, anexam as suas terras e propriedades, escravizam seus habitantes.
Isto está cientificamente comprovado, tendo ocorrido tanto na Europa como no Oriente Próximo e na Índia, onde as antigas sociedades agrícolas passaram a ser dominadas por cidades-estado e por impérios guerreiros. Violentos deuses celestes tornaram-se predominantes como vingativos emissários de trovões, inundações, secas e inanições. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência...: 1. a revista Veja já teve como manchete de capa "A Vingança da Natureza", atribuindo à Mãe Terra uma característica que é potencialmente do humano; 2. e filme Pearl Harbor reforça os papéis da mulher como uma idiota ou uma desesperada por homem e o do homem como um débil que coloca todos os seus sonhos a serviço da máquina de guerra sem fazer uma pergunta que seja.
É muito importante compreender a dificuldade do ser humano em lidar com a ambiguidade da Mãe Natureza, pois ela é, ao mesmo tempo, bela, fértil, amorosa, nutriz, benevolente, generosa, mas é também selvagem, destrutiva, desordenada, caótica e mortal. Isto faz com o que o ser humano pareça estar ainda em sua juventude -parágrafos atrás falava de jardim de infância- magoado com o que considera a traição que sua Mãe lhe fez ao lhe dizer o não dos limites. A Mãe enquanto Hécate, Nêmesis e Kali (10) ainda não foi bem compreendida pelo ser humano, a não ser na essência das tradições espirituais e na ciência de ponta contemporânea. O Sol ser engolido pela Lua inconstante e só então poder renascer -o mistério da entrega à Mãe Divina- ainda é muito difícil para o homem. É compreensível.
A Profanação do Mundo
A subjugação da Natureza é a face da externa do esforço interno de esquecer o Ser, deslocando o eixo de unificação psicológica para o ego. Para justificar isto, o aspecto feminino da divindade é relegado a uma posição inferior nas religiões. Nas histórias babilônicas sobre a criação, a deusa primordial Tiamat era o vazio sem forma, o útero negro e profundo de onde nasceu o universo; por si mesma, ela deu nascimento ao mundo. O deus Marduk foi, originalmente, seu filho. Mas depois tornou-se o deus criador, matando Tiamat, que passara a ser representada como o dragão (vejam bem) do caos. Marduk esmagou-lhe o crânio (a inteligência do feminino), dividiu seu corpo como se fosse uma ostra, e os ventos, a ele obedientes, varreram-lhe o sangue. Mas só dividindo-a em duas que ele conseguiu criar o firmamento do céu e o alicerce da terra (11).
Esta mesma dependência em relação aquela que se quer subjugada está na tradição cristã, quando o Gênesis mostra que Deus, como Marduk, precisou da mãe primordial para dividí-la e criar o cosmos, separando a luz das trevas, o dia da noite, as águas superiores das inferiores, os céus da terra e a terra seca dos mares. E mesmo quando Ele se voltou para a criação das plantas, dos animais terrestres e das águas, criaturas do mar e pássaros, ele precisou dela que então, por sua ordem, os criou.
A criação é, assim, no panteão masculino, uma atividade semelhante a da comunicação moderna, quando não temos contato direto com a realidade, que nos chega mediada pelos meios de comunicação, especialmente hoje, com as novas tecnologias da informação. Em terminologia teológica, este não é um modo direto, mas "mediato" de criação.
A Mãe Terra foi assim mortalmente atacada, tendo os seus símbolos -a mulher também- satanizados, encarnação do mal. As feiticeiras que o digam. Natureza e espiritualidade foram cindidos de forma abissal, primeiro pelas religiões patriarcais, e por fim pela última destas religiões, a ciência tecnomecanicista.
A reforma protestante no século XVI, com a supressão do culto à Virgem e a dessacralização do mundo natural foi decisiva neste processo. O homem passou ali a ser o único ser racional consciente em um mundo inanimado, a fonte de todas as deusas e deuses. O humanismo tornava-se uma religião. A negação do sagrado acabou por voltar-se contra o próprio homem. Porque apenas ele seria sagrado? Ele é apenas uma espécie a mais. A pretensa sacralidade da tecnologia arraigou-se na revolução científica do século XVII, germinada do fermento da Renascença e da Reforma: foi a destruição das restrições tradicionais ao conhecimento e o poder humanos. Ao saquear, violar, massacrar, infectar, escravizar, desalojar e destruir cultural e espiritualmente as populações do hoje México, Cortez, em carta ao rei da Espanha, que o pagou para esta missão, disse que seus companheiros não "estavam muito contentes com [as novas regras impostas pela Espanha] em particular com aquelas que os obrigavam criar raízes na terra; pois todos eles, ou a maioria deles, pretendiam lidar com essas terras como tinham feito com as primeiras ilhas que povoaram, a saber, exaurí-las, destruí-las e depois abandoná-las". Qualquer semelhança com o que se faz com as mulheres...
A Ganância Material
No século XVII a natureza morreu culturalmente tornando-se nada mais do que matéria inanimada em movimento: um sistema mecânico e controlado de maneira sempre igual, vale dizer sem surpresas, não mais pela Mãe, mas pelo Pai, Deus, agora no papel de engenheiro todo-poderoso. Como a natureza "funcionava" mecanicamente, aos poucos a própria figura de Deus se tornou desnecessária para a natureza, e no final do século XVIII ele desapareceu da visão científica do mundo, abrindo caminho à aceleração do ateísmo, que se desenvolvia aceleradamente.
Foi através destas operações paulatinas no campo simbólico que Mammon, o demônio da ganância comercial no Novo Testamento, passou a dominar o mundo que estava, então, profanado. É uma corrida movida pela força. Recordo-me que nos anos 70, no Rio de Janeiro, o famoso homeopata Dr. Bello distribuia um cartão em formato de coração, bordas e letras em vermelho dizendo: "Tudo é força mas só Deus é poder". Levei anos para compreender isto. É compreensível a confusão entre força e poder...
A revolução científica do século XVII ocorreu em um clima de pensamento permeado pela alquimia, pela magia, pelo misticismo e por um medo muito difundido da feitiçaria. A partir do século XVI ocorreu um crescente interesse por poderes mágicos, inclusive com a revitalização da tradição hermética. A célebre figura literária do Doutor Fausto resume esta busca pelo poder mágico e a venda da alma ao diabo em troca do poder. Fausto antecipou o nascimento da ciência mecanicista em quase um século, ao ser mago e incorporar ao mesmo tempo o desejo de possuir conhecimentos e poderes ilimitados. Ele foi tema de dezenas de peças literárias entre dramaturgia teatral, poemas, romances, etc., nos quais a crítica a este desejo estava presente refletindo a instabilidade da consciência humana naquela época, ainda com uma certa dimensão do sagrado preservada, e atravessou séculos, sendo que no século XIX ele já não era mais condenado por este desejo. Ao contrário o desejo pelo poder passou a ser considerado como bom, e não mau.
Fausto, Frankenstein, Bacon e o Desejo do Desejo
O Fausto em Goethe (1808) é isso: quando esgotado o prazo do contrato com o diabo, Fausto não seria enviado ao inferno conforme o contrato desde que ele não se cansasse jamais de sua busca sem fim pelo poder. A condição para não ir para o inferno é que ele jamais deixasse de permanecer insatisfeito. Exatamente o desejo do desejo.
Na mesma linha de Fausto está o personagem Dr. Frankenstein, que também é impelido pelo desejo de possuir o poder divino, aliás, como os atuais biogeneticistas, e por isto é destruído. Como Frankenstein, criamos muitos monstros que estão para nos destruir. O mais terrível artefato tecnológico humano, a bomba de nitrogênio, que libera energia semelhante a do sol, é detonada usando como espoleta a fissão de um dos átomos mais pesados, o plutônio, assim chamado em homenagem ao deus do mundo subterrâneo, ou seja, o deus dos infernos. A bomba de nitrogênio, Sheldrake ressalta também isto muito bem, é um dispositivo de transmutação digno de seus ancestrais alquímicos, baseado no casamento entre o sol (nitrogênio) e a terra (plutônio).
Neste processo de incorporação do conceito de que a natureza não é viva, é muito importante o papel desempenhado por Francis Bacon, no início do século XVII, que foi advogado por instrução e profissão, o que o capacitou a ser Lord Chancellor -quem preside a Câmara dos Lordes- a maior autoridade da Inglaterra. Bacon estava consciente das proibições existentes em sua época em relação à ambição desmedida e ao medo, culpa e sentido de mal tradicionalmente associados a este desejo de poder ilimitado sobre o universo. Foi exatamente ele quem desatanizou esta atitude. Fez isto através de um argumento simples: o domínio sobre a natureza estava garantido na Bíblia, quando Deus deu a Adão o poder de nomear as criaturas, o que foi feito antes do nascimento de Eva. Assim Bacon fez parecer que o domínio tecnológico da natureza era apenas a recuperação de um poder já dado por Deus e não algo novo, produto da ciência.
Ao mesmo tempo, Bacon elaborou o argumento -Sheldrake chega a sugerir que talvez ele tenha feito isto apenas como um sagaz argumento de advogado- de que o conhecimento inocente da natureza -a atividade da ciência, que assim estaria além do bem e do mal- nada tem a ver com o conhecimento moral da vida, que é assunto para, nas palavras de Bacon, ser "exercido pela sadia razão e pela verdadeira religião". Para ele a ciência era "masculina por nascimento" e dela emergeria "uma raça abençoada de heróis e superhomens" (12). Este foi o ideal nazista e hoje é o ideal apregoado, paradoxalmente sem qualquer censura -ao mesmo tempo que só o nazismo continua a ser denunciado e perseguido- pela já citada bioengenharia.
Entre os membros da Royal Society inglesa, a nata científica de então, Robert Boyle censurou severamente "a veneração que os homens habitualmente têm em relação aquilo que chamam de natureza", pois isto "obstruiu e limitou o império do homem sobre as criaturas inferiores". Ele propôs que "em vez de se usar a palavra natureza, que se tomava por uma deusa ou por uma espécie de semidivindade, nós a rejeitássemos de todo" .
É Sheldrake que esclarece: "Em retrospecto, podemos ver que ele [Bacon] estava errado. Pense, por exemplo, na atual devastação da floresta amazônica, que se tornou possível graças à tecnologia e à fé baconiana no direito do homem dominar a natureza. Uma sadia razão e uma verdadeira religião não estão hoje em evidência em lugar algum, e nada poderia hoje estar mais distante de nós do que o inocente exercício do direito, concedido ao homem por deus, de dar nomes às criaturas. Espécies incontáveis dessas criaturas estão sendo exterminadas, espécies que não chegam sequer a receber um nome, e que desaparecem desconhecidas."
Não é à toa que Bacon, em seu livro New Atlantis, de 1624, descreveu uma utopia tecnocrata na qual um sacerdócio científico tomava decisões para o bem do estado como um todo, e também decidia quais segredos da natureza deveriam permanecer secretos. O instituto de pesquisa de Francis Bacon chamava-se nada mais nada menos do que Casa de Salomão. Uma clara referência ao Selo de Salomão, presente no yantra de Sri Aurobindo -o triângulo para baixo cruzado com o triângulo para cima-, que significa alquimicamente a grande síntese ao nível da alma, pois nele os quatro elementos da natureza são reduzidos por processos anímicos de contração para apenas dois: o fogo (o ascendente) e a água (o descendente). O Selo é a grafia da comunhão e da transmutação dos elementos envolvidos, de maneira que sua água se torna sólida e seu fogo não queima, onde um elemento abraça o outro.
A Grécia Animista, o Homem Verde e o Sol no Centro
É igualmente esclarecedor sabermos que se nas culturas antigas as cosmologias eram admitidas sem discussão, na antiga Grécia, pela primeira vez na Europa, os filósofos elaboraram uma sofisticada concepção da natureza na qual todos complexos aspectos da vida foram minuciosamente discutidos. Nossos antepassados foram os herdeiros desta concepção centrada no animismo. Para eles, a natureza era viva pois apresentava movimento incessante e regular, e por isso inteligente como um animal (palavra que deriva do latim anima, alma) imenso dotado de alma e racionalidade própria. Foi neste terreno sólido que a Idade Média desenvolveu as fantásticas catedrais góticas, nas quais há "colunas e abóbodas que lembram bosques sagrados, onde a vegetação irrompe por toda parte. Diabinhos, gárgulas, demônios, dragões e animais surgem em profusão; acima deles voam anjos. Repetidas vezes, aparece a misteriosa figura do Homem Verde, uma cabeça entrelaçada com vegetação, de cuja boca, às vezes feita de folhas, brotam galhos" .
Prossegue Sheldrake:"A filosofia ortodoxa da natureza, ensinada nas escolas das catedrais e nas universidades, era animista; todas as criaturas vivas tinham alma. A alma não estava dentro do corpo; ao contrário, era o corpo que estava dentro da alma, e esta permeava todas as partes do corpo. (...) O intelecto humano não era separado das almas animal e vegetal; em vez disso, a mente racional estava ligada aos aspectos animal e corporal da mesma alma, que eram geralmente inconscientes. Em outras palavras, a alma humana incluía tanto a vida do corpo, os sentidos, as atividades corpóreas e os instintos animais" .
"A revolução copernicana na astronomia, longe de destruir a antiga idéia de organismo cósmico, foi, na verdade, nela inspirada. Quando Copérnico propôs que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmos, ele assim o fez tanto pelo fato de a ordem geométrica das esferas parecer mais harmoniosa como em sua reverência mística pelo sol: "Quem, no nosso templo mais belo, poderia colocar esta luz num outro lugar, ou num lugar melhor do que aquele a partir do qual ele possa, de imediato, iluminar o mundo? Isso para não falar do fato de que alguns a chamam, adequadamente, de a luz do mundo, ou-tros a chamam de a alma, outros ainda de a governadora" (13).
Copérnico, com o apoio de Kepler, um dos principais astrólogos de sua época, para quem também o Sol estava no centro, abriu o organismo cósmico na medida em que compreendeu que o cosmos não é um lugar fechado ao redor de um centro, mas infinito em todas as direções. Foi esta abertura que permitiu com seu desdobramento a substituição do modelo de cosmos vivo pelo modelo mecanicista, no qual o universo passa a ser visto como uma máquina, desprovido de espontaneidade, liberdade, criatividade, atado indefinidamente às "matemáticas leis de Deus".
A vitória desta visão se consolidou com René Descartes. Na França, em 1619, precisamente em 10 de novembro, ele, cujo nome marcaria o paradigma que está aí até hoje dominando -o paradigma cartesiano-mecanicista- concebeu os alicerces de uma nova ciência, que acreditava -pasmem- ter sido inspirada pela Mãe de Deus, pela qual três anos depois cumpriu a promessa de peregrinar até o santuário de Nossa Senhora de Loreto.
Descartes e a "Eliminação" da Alma
Descartes eliminou as almas da totalidade do mundo natural; toda a natureza passou a ser, no nível desta consciência limitada, inanimada, desprovida de alma, morta em vez de viva como ela é. Não é à toa a crise que vivemos. Mas isto não foi suficiente. A própria alma também foi retirada do corpo humano. Que se transformou então em mais um autômato mecânico, uma máquina como tantas outras. Apenas a alma racional, a mente permaneceu, alojada numa pequena região do cérebro: a glândula pineal. O que é muito interessante, pois desde aquela época até hoje a razão deslocou-se duas polegadas em direção ao córtex cerebral.
A assustadora idéia continua a mesma: para Descartes -e quantas vezes vemos as pessoas e a mídia dizendo a mesma coisa ainda hoje- havia uma espécie de "homenzinho controlador", a alma racional, que de dentro do cérebro controla a maquinária do corpo. E através dele controla todo o mundo. "Adeus" à Mãe Natureza. Ã origem. Não pode haver ataque mais frontal à essência das tradições antigas da humanidade e de todo o corpo de suas medicinas, por exemplo, e às conclusões da ciência de ponta contemporânea, do que este.
A barbaridade foi instalada de tal maneira, sob este signo então "científico" da natureza morta, que os seguidores de Descartes afirmavam enfaticamente que os animais não sentem dor, e que o som de cachorro sendo espancado é tão morto quanto o som que sai de um orgão... Rupert Sheldrake lembra-nos que esta maneira de ver o mundo foi criticada desde que apareceu, como a reação dos vitalistas no século XVII no campo da botânica e da zoologia. Foi a partir da década de 20 deste século que a teoria mecanicista conquistou a sua atual supremacia no ambiente da biologia acadêmica, e hoje os cientistas se julgam mentes desencarnadas, totalmente impessoais, destituídos de emoção: "Ninguém jamais é visto fazendo algo; métodos são seguidos, fenômenos são observados e medições são feitas, de preferência com instrumentos. Tudo é relatado na voz passiva. Até mesmo as crianças aprendem esse estilo e o praticam em seus cadernos de laboratório": um tubo de ensaio foi apanhado..." (14).
No entanto, na vida real, os cientistas vivem em meio à lutas traiçoeiras por verbas, à espionagem industrial, à fraude científica, à manipulação da opinião pública. Este é o caso, por exemplo, da indústria de cigarro. Sempre souberam do câncer da estupidez mas até o fim negaram de pés juntos. Como se sabe, mesmo Isaac Newton sucumbiu ao ego e à disputa por prestígio e propriedade tendo passado anos discutindo com Gottfried Leibniz a respeito de qual dos dois foi o primeiro a inventar o cálculo infinitesimal.
Ignorando tudo que não possa ser quantificado, Descartes forneceu a base filosófica para o ideal de desprendimento científico, ou seja, o desligamento da ciência em relação ao mundo vivo, a tudo que tem sentimento, som, odor, cor, surpresa, sutileza, classificadas como qualidades secundárias, pois "meramente subjetivas", que enquanto parcela da experiência corpórea não existem no mundo matemático objetivo, cognoscível por uma mente desencarnada. Foram os sucessos práticos deste tipo de ciência que lhe deram o prestígio vigente até hoje, pois realmente é uma via parcial de conhecimento (uma via que permite ao ocidental uma experiência parecida, dentro das devidas proporções, ao poderes quase mágicos desenvolvidos pelos yoguis e que os mestres dizem pouco ou nada valer na direção da verdadeira sabedoria). Entendida então como modelo de verdade absoluta, a ciência mecanicista estabeleceu este método, graças à física, como o modelo de desprendimento científico desejado por todas as áreas do saber inte-ressadas na "objetividade". É por isto que a economia consegue ser tão desumana e cruel, por exemplo. E que um sociólogo possa ser uma pessoa completamente desligada e contrária aos verdadeiros anseios e interesses da sociedade. E que um médico deixe a pessoa morrer por ela não ter dinheiro.
Sheldrake cita a exploração do velho Oeste americano como a aplicação exemplar deste modelo. Na década de 1860, com as estradas de ferro, precisou-se de carne e couro e os búfalos começaram a ser abatidos, até mesmo por mero "prazer". Para se ter uma idéia, apenas em dois anos, de 1872 a 1874, foram caçados mais de três milhões de búfalos. Em 1880, ou seja, seis anos após, não existiam mais búfalos, a não ser cerca de mil em reservas no final do século, que no início, pelos próprios cálculos mecanicistas, deveriam ser de trinta a quarenta milhões. Mas os índios não sofreram menos, como sabemos. Os índios das planícies foram os últimos a serem exterminados, sob o comando do general William Tecumseh Sherman, que na mesma década de 1860 traçou o seguinte plano em carta ao irmão: "Quanto mais pudermos matar neste ano, menos terão que ser mortos na próxima guerra, porque quanto mais desses índios eu vejo, mais convencido fico de que todos têm que ser mortos ou mantidos como uma espécie de indigentes. Seus atentados à civilização são simplesmente ridículos".
Agora temos uma visão clara de como a Mãe Natureza foi profanada. Aí está a origem e a história do enraizamento desta concepção de mundo, desta filosofia. Que aparece claramente no discurso da mídia, pois ela trabalha é com a linguagem das tradições, apondo aos produtos e aos serviços que quer vender os valores profundos da vida -da Mãe Natureza- revelados pelas tradições espirituais da humanidade. E confirmados por uma determinada e avançada ciência. Amor, confiança, bem estar, amizade, beleza, cooperação (15)...
Se continuamos a necessitar destes valores universais (16), e por isto profundos, não é melhor que os procuremos na sua verdadeira fonte? É por isto que a Mãe Natureza está de braços abertos. Para nos prover, nos consolar, nos abrigar, nos alimentar, nos fortificar, nos fazer nascer, nos transformar. Este abraço tão total -Unidade Sagrada- do qual sempre lembramos quando abraçamos as pessoas amadas.
Notas
* O uso da expressão Unidade Sagrada é uma referência ao grande Gregory Bateson e seu livro Una Unidad Sagrada, pasos ulteriores hacia una ecología de la mente. Editorial Gedisa, Barcelona, Espanha, 1993. Ele termina esta obra afirmando, -com o qual concordo plenamente e meu trabalho é uma contribuição para esta ecologia da mente- que “la monstruosa patología atomista en el nivel individual, en el nivel de familia, en el nivel nacional y en el nivel internacional –la patologia de las ideas erróneas en la cual vivimos- únicamente puede, en última instancia, corregirse en virtud de un enorme descubrimiento de esas relaciones que en la naturaleza hacen la belleza de la naturaleza” (op.cit., p. 303). Este artigo foi originalmente escrito para a mesa Os Imperativos Ecológicos e a Mobilização da Sociedade, que coordenei dentro do Ciclo Preparatório da Assembléia Global da United Religions Initiative 2002 (www.uri.org/rio2002), da qual fui o consultor de conteúdo e articulação.
(1) Ao avaliar o cumprimento dos compromissos firmados na ECO-92, os grandes fóruns governamentais e não-governamentais Rio+5 e Rio+10 (este último realizou-se em Johanesburgo exatamente a partir do dia seguinte do encerramento da Assembléia Global da URI no Rio de Janeiro em agosto de 202) pouco teve a comemorar.
(2) Ver o artigo A Voz Indígena, que fiz para a mesa-redonda de mesmo nome e publicado no site http://brazil-brasil.com/content/view/127/ e em vários outros.
(3) Recomendo fortemente a leitura de O Renascimento da Natureza -o reflorescimento da ciência e de Deus, de Rupert
Sheldrake, Cultrix, 1997.
(4) Grof, Stanislav. Psicologia do Futuro. Lições das Pesquisas Modernas de Consciência. Heresis, Niterói, 2000. p.29.
(5) Weil, Pierre. A Neurose do Paraíso Perdido. Cepa, Rio de Janeiro, 1987. p.34.
Sheldrake (op.cit.), p.29.
(6) Campbell, Joseph. O Poder do Mito. Palas Athena, SP, 1990. p.177.
(7) De acordo com Gheerbrant&Chevalier (Dictionaire des Symboles, Robert Laffont/Jupiter, Paris,1988), Hécate possui os dois aspectos da Mãe Natureza. Fertilidade, germinação, proteção da navegação e da pesca, prosperidade, eloquência, vitória, purificação; e ao mesmo tempo é a deusa dos espectros e dos terrores noturnos, dos fantasmas e dos monstros aterradores, mestra em feitiçaria. Nêmesis está associada à agricultura e dela depende a fertilidade ou não da Terra e consequentemente a sobrevivência humana. E Kali é a deusa do hinduísmo que destrói as ilusões. Ela dança sobre Shiva, o deus da Consciência, quando ele dorme, ou seja, quando a inconsciência está ativa e do seu corpo surge outro corpo igual, Shava, em sânscrito exatamente inconsciência.
(8) Sheldrake (op.cit.), p.30.
(9) Sheldrake (op.cit.), p.50.
(10) Idem, p.53.
(11) Idem, p.54.
(12) Idem, p.56.
(13) Ib., p.57-58.
(14) Idem, p.63.
(15) Para o melhor entendimento desta questão da ascenção contemporânea da demanda das qualidades da Mãe é absolutamente vital o estudo da obra dos biólogos Maturana e Varela
(16) Ver o Programa de Educação em Valores Universais da Associação Palas Athena, por exemplo através do artigo ROIZMAN, Laura Gorresio. Valores que não têm preço. In OURIQUES, Evandro Vieira (org.). Diálogo entre as Civilizações: a Experiência Brasileira. ONU. 2003. pp 181-189.
[Este artigo foi escrito a partir de seu livro (dirigido ao público de diálogo inter-religioso leigo em assuntos acadêmicos),
Yoga, Tradição e Ciência: um encontro revelador para os dias de hoje, publicado pelo NETCCON.ECO.UFRJ em 2001]
Precisamos compreender que a origem de toda a crise humana é apenas uma: o abandono da Mãe Natureza, por volta de 4000 a 3500 a. C.. Naquele momento, a sociedade humana teve a pacífica maneira matrifocal na qual vivia destruída por hordas bárbaras de invasores que adoravam deuses guerreiros. Eles destronaram as antigas deusas, rebaixando-as a esposas, filhas e consortes e implantaram, assim, uma nova concepção de mundo dominada pelos homens.
Este é origem da crise: o desprezo pelo Princípio Feminino. O abandono do equilíbrio entre Shiva e Shakti; entre Pai e Mãe; entre Céu e Terra; entre Yin e Yang; entre Princípio Feminino e Princípio Masculino. É por isto que a superação da dor da Humanidade depende de nosso empenho em recuperarmos esta Unidade Sagrada, da qual a unidade espiritual das religiões é espelho.
É disto que vozes minoritárias sempre falaram no Ocidente, ecoando suas próprias tradições espirituais. Mas apenas com a instalação da crise, a partir do final do século XIX, estas vozes passaram a ser mais e mais ouvidas, ecoando também, então, as tradições espirituais do Oriente. Hoje chegamos ao limite. Dez anos após a ECO-92 estamos construíndo a ECO-Espiritual que é a Assembléia Global da URI e a Aldeia Sagrada, pois para resolver a crise ecológica, em verdade, precisamos resolver a verdadeira questão que é o resgaste da Unidade.
Não é à toa que todas as avaliações feitas dos compromissos firmados na ECO-92 em relação ao desenvolvimento auto-sustentável são muito pouco animadores (1). A consciência ainda deficiente do ser humano insiste na destruição. Se abandonamos nossa Mãe como não brigarmos -até a morte- com nossos irmãos?
Para que este quadro seja revertido precisamos mais do que ouvir, no sentido estrito, a Unidade Sagrada, da qual fala de forma privilegiada, por exemplo, a Voz Indígena (2). Precisamos por a Unidade Sagrada imediatamente em prática. Vigiar, de verdade, todo o nosso comportamento para que a nossa ação possa ser testemunha viva Dela. É disto que precisamos para revelar a Paz no mundo.
A ciência mostra exatamente quando o patriarcado e a dominação masculina substituíram a ordem social mais antiga e mais harmoniosa (3). Muito mais do que mulheres em cargos de autoridade, o matriarcado significava ter o centro ético da organização psicológica e social fundado em valores culturais muito diferentes. Enquanto o patriarcado vive da imposição da lei, de uma ordem que se quer impor de for a para dentro, o matriarcado estabelece costumes, hábitos que vêm de dentro dos indíviduos para fora. Ou sejam, auto-organizatórios, porque lembram da Origem. Enquanto o patriarcado estabelece o poder militar, o matriarcado estabelece a autoridade espiritual, a autoridade ética. Enquanto o patriarcado encoraja o valor, a força e a perícia do guerreiro individual (endeusando a vitória e desprezando a derrota), a estrutura matriarcal estimula a coesão do coletivo. Valoriza não o heroísmo egóico mas a grandeza.
Realização Divina na Terra, Divina Terra
No matriarcado, a natureza e a fertilidade eram o coracão, a alma da existência. Toda a vida humana era impregnada por este diapasão. A dimensão sexual, por exemplo, era vivenciada como poder regenerativo, dádiva ou bênção do divino. A natureza sexual era inseparável da atitude espiritual. O ato sexual era oferecido à deusa, reverenciada pelo amor e pela paixão. Tratava-se de ato honroso e respeitoso, que agradava tanto à dimensão divina quanto a dimensão mortal, como vivência coesa e indistinta entre espírito e matéria. Realização divina na Terra. Tratava-se, assim, sem dúvida, de uma sociedade fundada na inseparabilidade. Na união inclusiva dos opostos complementares. E não na diáspora trágica em que vivemos hoje, em que exponenciamos sermos os perseguidores de nós mesmos, numa roda-de-fogo torturante e destrutiva.
Quando a Mãe Natureza começou a ser tratada como inimiga, separada de Mim, tratada como o Outro e não mais como o Mesmo, como ela e não mais como eu mesmo, iniciou-se a operação de esquecimento do Ser, assumindo-se a opção de que o ser humano é algo diferente dela. Algo que não pertence a ela, e que destina-se a dominá-la, subjugá-la, utilizá-la para seus próprios (do ego) interesses.
Constrói-se assim uma cultura auto-referenciada, antropocêntrica, fálica e consequentemente bélica, centrada na dominação e no uso exploratório de tudo aquilo que é nutriz, delicado, sensível, misterioso, incontrolável. É por isto que sexo só pode ser pornográfico e dinheiro só pode ser obtido por meios escusos. Todo o caráter prazeiroso e próspero da Mãe Terra, que a tudo criou, perdeu-se
Separado, em sua fantasia, de sua Mãe, o ser humano optou por uma espécie de jardim de infância retrógado, no qual mantém-se, inapropriadamente, na inconsciência da realidade de sua própria existência. Temos então esta situação paradoxal: o ser humano rejeita sua essência, rejeita Brahman, rejeita todos os nomes do Inominável, rejeita a Consciência Cósmica; e como não pode fazer isto de fato, mas apenas de maneira fantasiosa, continua a necessitar dela como necessita do ar. É daí que nasce, por exemplo, a situação patética dos engarrafamentos nas vias de saída de todas as cidades do mundo às vésperas de feriados e finais de semana. Trata-se da nostalgia dramática em relação à natureza. Da mesma forma que a obsessão sexual, quando o corpo do outro é a única presença da Natureza em meio ao estéril ambiente construído apenas com a razão.
A Fantasia da Separatividade
Como mostra Pierre Weil, "toda a história da humanidade posterior a esta queda na fantasia da separatividade, consiste em uma luta silenciosa entre duas forças: as do desejo ligado a este fantasma que leva à Neurose do Paraíso Perdido e a da nostalgia inconsciente do estado de Sabedoria primordial da Consciência Cósmica não-dual. Todos os esforços dos grandes mestres de Israel e da Humanidade, de Moisés a Cristo, passando por Salomão, os Profetas, os Essênios, e os Terapeutas descritos por Philon de Alexandria, dos Rishis do Ganges aos Budas do Tibet, das Escolas da Tradição a Krishnamurti, Sri Aurobindo, Teilhard de Chardin, René Guénon, Gurdjieff, entre outros, assim como a psicoterapia em suas linhas mais avançadas como as de Jung, Maslow e Assagioli, destinam-se a restabelecer no homem a vivência da inseparabilidade da Consciência Cósmica" (4).
Prosseguindo com Weil, "Freud, ao mostrar a existência de um inconsciente, no qual se encontram reprimidas certas pulsões instintivas fundamentais, abriu a porta para uma melhor compreensão daquilo que foi reprimido na história da humanidade. Como ele próprio diz "...a gênese das neuroses nos aparece sob a seguinte fórmula simples: o "ego" tentou abafar certas partes do "id" de uma maneira imprópria, ele malogrou e o "id" se vinga (...) sob a forma da reação patológica; é exatamente isso que Maslow nos demonstra. Neste caso, a fonte do maior sofrimento da humanidade é a repressão de tudo aquilo que estes valores intrínsecos representam: a Árvore da Vida..." (5), ou seja, a sabedoria primordial.
É o mesmo que nos diz a terceira carta do tarô, a Terceira Estação: A Imperatriz. Nas palavras de Rita Lee: "Estou no colo da Mãe Natureza. Ela toma conta da minha cabeça". É a perda deste comando que fez o mundo perder a cabeça. Nesta carta encontramos Deméter, a deusa grega da terra cultivada, em seu florido jardim, que sucedeu à deusa primordial Gaia, a Mãe Terra, uma vez que com a agricultura -o jardim florido- a Mãe Natureza começou a ter o seu papel reduzido, até ocupar apenas o lugar de matéria prima, recursos a serem utilizados para o objetivo da obtenção de lucro a qualquer custo. Segundo a cosmogonia grega, Gaia, a Terra, através de geração espontânea, dá à luz a Urano, o Céu, que é seu filho e seu amante. Das montanhas, olhando fixamente para baixo, para ela, ele fez cair a chuva fértil sobre as secretas fendas de sua mãe -sagrada eroticidade- e ela produziu grama, flores e árvores, e criou os pássaros e as feras.
Rejeitando a Mãe
As evidências recentes da arqueologia, em especial as descobertas na Europa meridional e na Turquia, comprovam que a humanidade viveu durante milhares de anos em um estado de absoluta integração com a natureza, de onde extraía o seu alimento e proteção (6). Esses primeiros habitantes do nosso planeta viviam de acordo com as leis e os ritmos da natureza e reverenciavam essa força maior através do culto à deusa Mãe. Eram as sociedades matriarcais, estruturadas em um modelo econômico de propriedade solidária das riquezas produtivas e divisão igualitária dos bens de consumo. O trabalho era para o grupo -enquanto máxima expressão do indivíduo- uma vez que o que você faz não é para você mas para os outros, para o coletivo. Karma Yoga. Nelas, os mais velhos eram respeitados exatamente por serem os depositários, os livros-vivos nos quais estava gravada a Tradição: a experienciação da vida.
Não existiam a propriedade privada, nem a neurose do ter substituindo o ser, como Erich Fromm já alertava há décadas e décadas atrás; nem as guerras de conquista, nem a dominação do homem pelo homem -aquisições culturais mais recentes da nossa história. Essas primeiras sociedades agrícolas viviam em colônias confortáveis e usualmente não-fortificadas. Produziam uma cerâmica muito elaborada. Elas eram basicamente pacíficas e não existia qualquer sistema de estratificação social.
O homem vivia em uma relação de parceria e cooperação com a mulher. As mulheres geralmente permaneciam nas aldeias recolhendo frutos e grãos e cuidando das crianças da tribo, enquanto os homens saíam em bando para caçar. Com o passar do tempo, as mulheres começaram a perceber que as sementes que caíam próximo às suas habitações faziam surgir novos pés de frutos. Estava descoberto o cultivo da agricultura, que, segundo a mitologia grega, foi revelada à mulher pela deusa do trigo, Deméter, sabemos, a Imperatriz.
As tribos de então eram predominantemente nômades e tornaram-se, por volta de 9000 a.C, sedentárias passando a ter seu sustento através da colheita agrícola. Nesses tempos eram realizados intensos e complexos rituais religiosos para garantir a fertilidade da mulher e da terra, intimamente correlacionadas.
Esses rituais geralmente aconteciam na lua cheia -apenas uma das quatro fases cíclicas da lua, como a menstruação; ao contrário da fixidez do sol, masculino, sempre cheio. É importante sublinhar, e a medicina ayurvédica tem isso como central, que se o Sol é mais constante, atravessando um ciclo de energia a cada 365 1/4 dias, e nunca estando ausente durante o dia, a Lua às vezes está cheia e brilhante e em certos momentos completamente ausente. É ela quem governa, isto a ciência reconhece há muito tempo, as marés dos oceanos, e governa também os oceanos cósmicos, estes oceanos que são as águas da existência na tradição hindu.
O Feminino Come o Masculino
É muitíssimo importante ressaltar o princípio, registrado por Joseph Campbell, "que ela (a Lua) engole o Sol no Oeste e volta a dar-lhe nascimento no Leste. E o sol atravessa o seu corpo durante a noite" (7). A metáfora tântrica é muito clara. No amor físico transcendental entre o princípio masculino e o princípio feminino é o feminino que engole, que é ativo. Como no amor tântrico, em que a mulher fica por cima, come o masculino -ao contrário da idéia comum do homem "comer" a mulher. O Sol, masculino só renasce após percorrer, por dentro, durante toda a noite, o corpo feminino. O masculino é engolido pelo que não controla, e renasce exatamente por se deixar ser engolido. Renasce por não temer o insondável. Não temer a morte.
Olhe agora as pontas de seus dedos. Veja suas impressões digitais. Não existem outras iguais em todo o mundo. De onde vêm estas perfeitas espirais, presentes nas pontas de nossos dedos, presentes nas intocáveis galáxias de incalculável grandeza? Mistério. Como a espiral do DNA. Como a espiral de Kundaliní subindo por Sushuma, unindo as polaridades de Ida e Pingala. Como a da consciência em êxtase xamânico; em estado não-comum de consciência. Diga para você mesmo, sinceramente: "el camino no se hace al caminar"? Você sabia ontem o que você seria hoje? Não é uma surpresa para nós mesmos o que somos? Não foi assim que Indiana Jones, pressionado pelo fato de seu pai estar à morte, ao pisar no abismo viu surgir sob os seus pés a ponte que até então era invisível?
Nos rituais da lua cheia -até hoje os ciganos fazem isto, como a comunidade religiosa Trybo Cósmica o faz há 23 anos ininterruptos no Rio de Janeiro sob a proteção de Seu Tranca Rua - as mulheres gozavam do status de pontífices espirituais do poder doador e mantenedor da vida da grande Deusa Mãe, pois dramatizavam concretamente em seus próprios corpos os mistérios da natureza: gestação e geração.
É importante lembrar que os homens de então não tinham consciência de seu papel biológico no processo de concepção, e atribuíam a procriação aos ciclos rítmicos da natureza refletidos nas fases da lua.
Dentro de um processo complexo, diversas variáveis atuaram no sentido da subjugação do princípio feminino e consequentemente das mulheres: o acúmulo da produção agrícola excedente permitiu que alguns grupos tornassem-se mais poderosos econômica e politicamente do que outros; o processo de fixação do homem à terra facilitou a gradativa percepção do seu papel no processo da procriação, o que gerou a reivindicação do direito de saber quem eram os "seus" filhos legítimos, a quem deixariam a sua herança material e espiritual, até então transmitida pela via matriarcal; e o hábito do pastoreio permitiu lidar com o sangue, abrindo caminho para a guerra.
A mulher, e claro, a Mãe Natureza, passou assim a ser propriedade do homem. Lembre dos bárbaros, tomando tudo e todos, a qualquer custo, para si. Sem qualquer critério. Apenas o da vontade de tomar para o próprio ego. Este é o clima. É a Queda, a Expulsão do Paraíso, o fim da Idade de Ouro. Os grupos econômicos mais poderosos, militarmente equipados, dedicados a expandir seus domínios sobre todos os que podem, anexam as suas terras e propriedades, escravizam seus habitantes.
Isto está cientificamente comprovado, tendo ocorrido tanto na Europa como no Oriente Próximo e na Índia, onde as antigas sociedades agrícolas passaram a ser dominadas por cidades-estado e por impérios guerreiros. Violentos deuses celestes tornaram-se predominantes como vingativos emissários de trovões, inundações, secas e inanições. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência...: 1. a revista Veja já teve como manchete de capa "A Vingança da Natureza", atribuindo à Mãe Terra uma característica que é potencialmente do humano; 2. e filme Pearl Harbor reforça os papéis da mulher como uma idiota ou uma desesperada por homem e o do homem como um débil que coloca todos os seus sonhos a serviço da máquina de guerra sem fazer uma pergunta que seja.
É muito importante compreender a dificuldade do ser humano em lidar com a ambiguidade da Mãe Natureza, pois ela é, ao mesmo tempo, bela, fértil, amorosa, nutriz, benevolente, generosa, mas é também selvagem, destrutiva, desordenada, caótica e mortal. Isto faz com o que o ser humano pareça estar ainda em sua juventude -parágrafos atrás falava de jardim de infância- magoado com o que considera a traição que sua Mãe lhe fez ao lhe dizer o não dos limites. A Mãe enquanto Hécate, Nêmesis e Kali (10) ainda não foi bem compreendida pelo ser humano, a não ser na essência das tradições espirituais e na ciência de ponta contemporânea. O Sol ser engolido pela Lua inconstante e só então poder renascer -o mistério da entrega à Mãe Divina- ainda é muito difícil para o homem. É compreensível.
A Profanação do Mundo
A subjugação da Natureza é a face da externa do esforço interno de esquecer o Ser, deslocando o eixo de unificação psicológica para o ego. Para justificar isto, o aspecto feminino da divindade é relegado a uma posição inferior nas religiões. Nas histórias babilônicas sobre a criação, a deusa primordial Tiamat era o vazio sem forma, o útero negro e profundo de onde nasceu o universo; por si mesma, ela deu nascimento ao mundo. O deus Marduk foi, originalmente, seu filho. Mas depois tornou-se o deus criador, matando Tiamat, que passara a ser representada como o dragão (vejam bem) do caos. Marduk esmagou-lhe o crânio (a inteligência do feminino), dividiu seu corpo como se fosse uma ostra, e os ventos, a ele obedientes, varreram-lhe o sangue. Mas só dividindo-a em duas que ele conseguiu criar o firmamento do céu e o alicerce da terra (11).
Esta mesma dependência em relação aquela que se quer subjugada está na tradição cristã, quando o Gênesis mostra que Deus, como Marduk, precisou da mãe primordial para dividí-la e criar o cosmos, separando a luz das trevas, o dia da noite, as águas superiores das inferiores, os céus da terra e a terra seca dos mares. E mesmo quando Ele se voltou para a criação das plantas, dos animais terrestres e das águas, criaturas do mar e pássaros, ele precisou dela que então, por sua ordem, os criou.
A criação é, assim, no panteão masculino, uma atividade semelhante a da comunicação moderna, quando não temos contato direto com a realidade, que nos chega mediada pelos meios de comunicação, especialmente hoje, com as novas tecnologias da informação. Em terminologia teológica, este não é um modo direto, mas "mediato" de criação.
A Mãe Terra foi assim mortalmente atacada, tendo os seus símbolos -a mulher também- satanizados, encarnação do mal. As feiticeiras que o digam. Natureza e espiritualidade foram cindidos de forma abissal, primeiro pelas religiões patriarcais, e por fim pela última destas religiões, a ciência tecnomecanicista.
A reforma protestante no século XVI, com a supressão do culto à Virgem e a dessacralização do mundo natural foi decisiva neste processo. O homem passou ali a ser o único ser racional consciente em um mundo inanimado, a fonte de todas as deusas e deuses. O humanismo tornava-se uma religião. A negação do sagrado acabou por voltar-se contra o próprio homem. Porque apenas ele seria sagrado? Ele é apenas uma espécie a mais. A pretensa sacralidade da tecnologia arraigou-se na revolução científica do século XVII, germinada do fermento da Renascença e da Reforma: foi a destruição das restrições tradicionais ao conhecimento e o poder humanos. Ao saquear, violar, massacrar, infectar, escravizar, desalojar e destruir cultural e espiritualmente as populações do hoje México, Cortez, em carta ao rei da Espanha, que o pagou para esta missão, disse que seus companheiros não "estavam muito contentes com [as novas regras impostas pela Espanha] em particular com aquelas que os obrigavam criar raízes na terra; pois todos eles, ou a maioria deles, pretendiam lidar com essas terras como tinham feito com as primeiras ilhas que povoaram, a saber, exaurí-las, destruí-las e depois abandoná-las". Qualquer semelhança com o que se faz com as mulheres...
A Ganância Material
No século XVII a natureza morreu culturalmente tornando-se nada mais do que matéria inanimada em movimento: um sistema mecânico e controlado de maneira sempre igual, vale dizer sem surpresas, não mais pela Mãe, mas pelo Pai, Deus, agora no papel de engenheiro todo-poderoso. Como a natureza "funcionava" mecanicamente, aos poucos a própria figura de Deus se tornou desnecessária para a natureza, e no final do século XVIII ele desapareceu da visão científica do mundo, abrindo caminho à aceleração do ateísmo, que se desenvolvia aceleradamente.
Foi através destas operações paulatinas no campo simbólico que Mammon, o demônio da ganância comercial no Novo Testamento, passou a dominar o mundo que estava, então, profanado. É uma corrida movida pela força. Recordo-me que nos anos 70, no Rio de Janeiro, o famoso homeopata Dr. Bello distribuia um cartão em formato de coração, bordas e letras em vermelho dizendo: "Tudo é força mas só Deus é poder". Levei anos para compreender isto. É compreensível a confusão entre força e poder...
A revolução científica do século XVII ocorreu em um clima de pensamento permeado pela alquimia, pela magia, pelo misticismo e por um medo muito difundido da feitiçaria. A partir do século XVI ocorreu um crescente interesse por poderes mágicos, inclusive com a revitalização da tradição hermética. A célebre figura literária do Doutor Fausto resume esta busca pelo poder mágico e a venda da alma ao diabo em troca do poder. Fausto antecipou o nascimento da ciência mecanicista em quase um século, ao ser mago e incorporar ao mesmo tempo o desejo de possuir conhecimentos e poderes ilimitados. Ele foi tema de dezenas de peças literárias entre dramaturgia teatral, poemas, romances, etc., nos quais a crítica a este desejo estava presente refletindo a instabilidade da consciência humana naquela época, ainda com uma certa dimensão do sagrado preservada, e atravessou séculos, sendo que no século XIX ele já não era mais condenado por este desejo. Ao contrário o desejo pelo poder passou a ser considerado como bom, e não mau.
Fausto, Frankenstein, Bacon e o Desejo do Desejo
O Fausto em Goethe (1808) é isso: quando esgotado o prazo do contrato com o diabo, Fausto não seria enviado ao inferno conforme o contrato desde que ele não se cansasse jamais de sua busca sem fim pelo poder. A condição para não ir para o inferno é que ele jamais deixasse de permanecer insatisfeito. Exatamente o desejo do desejo.
Na mesma linha de Fausto está o personagem Dr. Frankenstein, que também é impelido pelo desejo de possuir o poder divino, aliás, como os atuais biogeneticistas, e por isto é destruído. Como Frankenstein, criamos muitos monstros que estão para nos destruir. O mais terrível artefato tecnológico humano, a bomba de nitrogênio, que libera energia semelhante a do sol, é detonada usando como espoleta a fissão de um dos átomos mais pesados, o plutônio, assim chamado em homenagem ao deus do mundo subterrâneo, ou seja, o deus dos infernos. A bomba de nitrogênio, Sheldrake ressalta também isto muito bem, é um dispositivo de transmutação digno de seus ancestrais alquímicos, baseado no casamento entre o sol (nitrogênio) e a terra (plutônio).
Neste processo de incorporação do conceito de que a natureza não é viva, é muito importante o papel desempenhado por Francis Bacon, no início do século XVII, que foi advogado por instrução e profissão, o que o capacitou a ser Lord Chancellor -quem preside a Câmara dos Lordes- a maior autoridade da Inglaterra. Bacon estava consciente das proibições existentes em sua época em relação à ambição desmedida e ao medo, culpa e sentido de mal tradicionalmente associados a este desejo de poder ilimitado sobre o universo. Foi exatamente ele quem desatanizou esta atitude. Fez isto através de um argumento simples: o domínio sobre a natureza estava garantido na Bíblia, quando Deus deu a Adão o poder de nomear as criaturas, o que foi feito antes do nascimento de Eva. Assim Bacon fez parecer que o domínio tecnológico da natureza era apenas a recuperação de um poder já dado por Deus e não algo novo, produto da ciência.
Ao mesmo tempo, Bacon elaborou o argumento -Sheldrake chega a sugerir que talvez ele tenha feito isto apenas como um sagaz argumento de advogado- de que o conhecimento inocente da natureza -a atividade da ciência, que assim estaria além do bem e do mal- nada tem a ver com o conhecimento moral da vida, que é assunto para, nas palavras de Bacon, ser "exercido pela sadia razão e pela verdadeira religião". Para ele a ciência era "masculina por nascimento" e dela emergeria "uma raça abençoada de heróis e superhomens" (12). Este foi o ideal nazista e hoje é o ideal apregoado, paradoxalmente sem qualquer censura -ao mesmo tempo que só o nazismo continua a ser denunciado e perseguido- pela já citada bioengenharia.
Entre os membros da Royal Society inglesa, a nata científica de então, Robert Boyle censurou severamente "a veneração que os homens habitualmente têm em relação aquilo que chamam de natureza", pois isto "obstruiu e limitou o império do homem sobre as criaturas inferiores". Ele propôs que "em vez de se usar a palavra natureza, que se tomava por uma deusa ou por uma espécie de semidivindade, nós a rejeitássemos de todo" .
É Sheldrake que esclarece: "Em retrospecto, podemos ver que ele [Bacon] estava errado. Pense, por exemplo, na atual devastação da floresta amazônica, que se tornou possível graças à tecnologia e à fé baconiana no direito do homem dominar a natureza. Uma sadia razão e uma verdadeira religião não estão hoje em evidência em lugar algum, e nada poderia hoje estar mais distante de nós do que o inocente exercício do direito, concedido ao homem por deus, de dar nomes às criaturas. Espécies incontáveis dessas criaturas estão sendo exterminadas, espécies que não chegam sequer a receber um nome, e que desaparecem desconhecidas."
Não é à toa que Bacon, em seu livro New Atlantis, de 1624, descreveu uma utopia tecnocrata na qual um sacerdócio científico tomava decisões para o bem do estado como um todo, e também decidia quais segredos da natureza deveriam permanecer secretos. O instituto de pesquisa de Francis Bacon chamava-se nada mais nada menos do que Casa de Salomão. Uma clara referência ao Selo de Salomão, presente no yantra de Sri Aurobindo -o triângulo para baixo cruzado com o triângulo para cima-, que significa alquimicamente a grande síntese ao nível da alma, pois nele os quatro elementos da natureza são reduzidos por processos anímicos de contração para apenas dois: o fogo (o ascendente) e a água (o descendente). O Selo é a grafia da comunhão e da transmutação dos elementos envolvidos, de maneira que sua água se torna sólida e seu fogo não queima, onde um elemento abraça o outro.
A Grécia Animista, o Homem Verde e o Sol no Centro
É igualmente esclarecedor sabermos que se nas culturas antigas as cosmologias eram admitidas sem discussão, na antiga Grécia, pela primeira vez na Europa, os filósofos elaboraram uma sofisticada concepção da natureza na qual todos complexos aspectos da vida foram minuciosamente discutidos. Nossos antepassados foram os herdeiros desta concepção centrada no animismo. Para eles, a natureza era viva pois apresentava movimento incessante e regular, e por isso inteligente como um animal (palavra que deriva do latim anima, alma) imenso dotado de alma e racionalidade própria. Foi neste terreno sólido que a Idade Média desenvolveu as fantásticas catedrais góticas, nas quais há "colunas e abóbodas que lembram bosques sagrados, onde a vegetação irrompe por toda parte. Diabinhos, gárgulas, demônios, dragões e animais surgem em profusão; acima deles voam anjos. Repetidas vezes, aparece a misteriosa figura do Homem Verde, uma cabeça entrelaçada com vegetação, de cuja boca, às vezes feita de folhas, brotam galhos" .
Prossegue Sheldrake:"A filosofia ortodoxa da natureza, ensinada nas escolas das catedrais e nas universidades, era animista; todas as criaturas vivas tinham alma. A alma não estava dentro do corpo; ao contrário, era o corpo que estava dentro da alma, e esta permeava todas as partes do corpo. (...) O intelecto humano não era separado das almas animal e vegetal; em vez disso, a mente racional estava ligada aos aspectos animal e corporal da mesma alma, que eram geralmente inconscientes. Em outras palavras, a alma humana incluía tanto a vida do corpo, os sentidos, as atividades corpóreas e os instintos animais" .
"A revolução copernicana na astronomia, longe de destruir a antiga idéia de organismo cósmico, foi, na verdade, nela inspirada. Quando Copérnico propôs que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmos, ele assim o fez tanto pelo fato de a ordem geométrica das esferas parecer mais harmoniosa como em sua reverência mística pelo sol: "Quem, no nosso templo mais belo, poderia colocar esta luz num outro lugar, ou num lugar melhor do que aquele a partir do qual ele possa, de imediato, iluminar o mundo? Isso para não falar do fato de que alguns a chamam, adequadamente, de a luz do mundo, ou-tros a chamam de a alma, outros ainda de a governadora" (13).
Copérnico, com o apoio de Kepler, um dos principais astrólogos de sua época, para quem também o Sol estava no centro, abriu o organismo cósmico na medida em que compreendeu que o cosmos não é um lugar fechado ao redor de um centro, mas infinito em todas as direções. Foi esta abertura que permitiu com seu desdobramento a substituição do modelo de cosmos vivo pelo modelo mecanicista, no qual o universo passa a ser visto como uma máquina, desprovido de espontaneidade, liberdade, criatividade, atado indefinidamente às "matemáticas leis de Deus".
A vitória desta visão se consolidou com René Descartes. Na França, em 1619, precisamente em 10 de novembro, ele, cujo nome marcaria o paradigma que está aí até hoje dominando -o paradigma cartesiano-mecanicista- concebeu os alicerces de uma nova ciência, que acreditava -pasmem- ter sido inspirada pela Mãe de Deus, pela qual três anos depois cumpriu a promessa de peregrinar até o santuário de Nossa Senhora de Loreto.
Descartes e a "Eliminação" da Alma
Descartes eliminou as almas da totalidade do mundo natural; toda a natureza passou a ser, no nível desta consciência limitada, inanimada, desprovida de alma, morta em vez de viva como ela é. Não é à toa a crise que vivemos. Mas isto não foi suficiente. A própria alma também foi retirada do corpo humano. Que se transformou então em mais um autômato mecânico, uma máquina como tantas outras. Apenas a alma racional, a mente permaneceu, alojada numa pequena região do cérebro: a glândula pineal. O que é muito interessante, pois desde aquela época até hoje a razão deslocou-se duas polegadas em direção ao córtex cerebral.
A assustadora idéia continua a mesma: para Descartes -e quantas vezes vemos as pessoas e a mídia dizendo a mesma coisa ainda hoje- havia uma espécie de "homenzinho controlador", a alma racional, que de dentro do cérebro controla a maquinária do corpo. E através dele controla todo o mundo. "Adeus" à Mãe Natureza. Ã origem. Não pode haver ataque mais frontal à essência das tradições antigas da humanidade e de todo o corpo de suas medicinas, por exemplo, e às conclusões da ciência de ponta contemporânea, do que este.
A barbaridade foi instalada de tal maneira, sob este signo então "científico" da natureza morta, que os seguidores de Descartes afirmavam enfaticamente que os animais não sentem dor, e que o som de cachorro sendo espancado é tão morto quanto o som que sai de um orgão... Rupert Sheldrake lembra-nos que esta maneira de ver o mundo foi criticada desde que apareceu, como a reação dos vitalistas no século XVII no campo da botânica e da zoologia. Foi a partir da década de 20 deste século que a teoria mecanicista conquistou a sua atual supremacia no ambiente da biologia acadêmica, e hoje os cientistas se julgam mentes desencarnadas, totalmente impessoais, destituídos de emoção: "Ninguém jamais é visto fazendo algo; métodos são seguidos, fenômenos são observados e medições são feitas, de preferência com instrumentos. Tudo é relatado na voz passiva. Até mesmo as crianças aprendem esse estilo e o praticam em seus cadernos de laboratório": um tubo de ensaio foi apanhado..." (14).
No entanto, na vida real, os cientistas vivem em meio à lutas traiçoeiras por verbas, à espionagem industrial, à fraude científica, à manipulação da opinião pública. Este é o caso, por exemplo, da indústria de cigarro. Sempre souberam do câncer da estupidez mas até o fim negaram de pés juntos. Como se sabe, mesmo Isaac Newton sucumbiu ao ego e à disputa por prestígio e propriedade tendo passado anos discutindo com Gottfried Leibniz a respeito de qual dos dois foi o primeiro a inventar o cálculo infinitesimal.
Ignorando tudo que não possa ser quantificado, Descartes forneceu a base filosófica para o ideal de desprendimento científico, ou seja, o desligamento da ciência em relação ao mundo vivo, a tudo que tem sentimento, som, odor, cor, surpresa, sutileza, classificadas como qualidades secundárias, pois "meramente subjetivas", que enquanto parcela da experiência corpórea não existem no mundo matemático objetivo, cognoscível por uma mente desencarnada. Foram os sucessos práticos deste tipo de ciência que lhe deram o prestígio vigente até hoje, pois realmente é uma via parcial de conhecimento (uma via que permite ao ocidental uma experiência parecida, dentro das devidas proporções, ao poderes quase mágicos desenvolvidos pelos yoguis e que os mestres dizem pouco ou nada valer na direção da verdadeira sabedoria). Entendida então como modelo de verdade absoluta, a ciência mecanicista estabeleceu este método, graças à física, como o modelo de desprendimento científico desejado por todas as áreas do saber inte-ressadas na "objetividade". É por isto que a economia consegue ser tão desumana e cruel, por exemplo. E que um sociólogo possa ser uma pessoa completamente desligada e contrária aos verdadeiros anseios e interesses da sociedade. E que um médico deixe a pessoa morrer por ela não ter dinheiro.
Sheldrake cita a exploração do velho Oeste americano como a aplicação exemplar deste modelo. Na década de 1860, com as estradas de ferro, precisou-se de carne e couro e os búfalos começaram a ser abatidos, até mesmo por mero "prazer". Para se ter uma idéia, apenas em dois anos, de 1872 a 1874, foram caçados mais de três milhões de búfalos. Em 1880, ou seja, seis anos após, não existiam mais búfalos, a não ser cerca de mil em reservas no final do século, que no início, pelos próprios cálculos mecanicistas, deveriam ser de trinta a quarenta milhões. Mas os índios não sofreram menos, como sabemos. Os índios das planícies foram os últimos a serem exterminados, sob o comando do general William Tecumseh Sherman, que na mesma década de 1860 traçou o seguinte plano em carta ao irmão: "Quanto mais pudermos matar neste ano, menos terão que ser mortos na próxima guerra, porque quanto mais desses índios eu vejo, mais convencido fico de que todos têm que ser mortos ou mantidos como uma espécie de indigentes. Seus atentados à civilização são simplesmente ridículos".
Agora temos uma visão clara de como a Mãe Natureza foi profanada. Aí está a origem e a história do enraizamento desta concepção de mundo, desta filosofia. Que aparece claramente no discurso da mídia, pois ela trabalha é com a linguagem das tradições, apondo aos produtos e aos serviços que quer vender os valores profundos da vida -da Mãe Natureza- revelados pelas tradições espirituais da humanidade. E confirmados por uma determinada e avançada ciência. Amor, confiança, bem estar, amizade, beleza, cooperação (15)...
Se continuamos a necessitar destes valores universais (16), e por isto profundos, não é melhor que os procuremos na sua verdadeira fonte? É por isto que a Mãe Natureza está de braços abertos. Para nos prover, nos consolar, nos abrigar, nos alimentar, nos fortificar, nos fazer nascer, nos transformar. Este abraço tão total -Unidade Sagrada- do qual sempre lembramos quando abraçamos as pessoas amadas.
Notas
* O uso da expressão Unidade Sagrada é uma referência ao grande Gregory Bateson e seu livro Una Unidad Sagrada, pasos ulteriores hacia una ecología de la mente. Editorial Gedisa, Barcelona, Espanha, 1993. Ele termina esta obra afirmando, -com o qual concordo plenamente e meu trabalho é uma contribuição para esta ecologia da mente- que “la monstruosa patología atomista en el nivel individual, en el nivel de familia, en el nivel nacional y en el nivel internacional –la patologia de las ideas erróneas en la cual vivimos- únicamente puede, en última instancia, corregirse en virtud de un enorme descubrimiento de esas relaciones que en la naturaleza hacen la belleza de la naturaleza” (op.cit., p. 303). Este artigo foi originalmente escrito para a mesa Os Imperativos Ecológicos e a Mobilização da Sociedade, que coordenei dentro do Ciclo Preparatório da Assembléia Global da United Religions Initiative 2002 (www.uri.org/rio2002), da qual fui o consultor de conteúdo e articulação.
(1) Ao avaliar o cumprimento dos compromissos firmados na ECO-92, os grandes fóruns governamentais e não-governamentais Rio+5 e Rio+10 (este último realizou-se em Johanesburgo exatamente a partir do dia seguinte do encerramento da Assembléia Global da URI no Rio de Janeiro em agosto de 202) pouco teve a comemorar.
(2) Ver o artigo A Voz Indígena, que fiz para a mesa-redonda de mesmo nome e publicado no site http://brazil-brasil.com/content/view/127/ e em vários outros.
(3) Recomendo fortemente a leitura de O Renascimento da Natureza -o reflorescimento da ciência e de Deus, de Rupert
Sheldrake, Cultrix, 1997.
(4) Grof, Stanislav. Psicologia do Futuro. Lições das Pesquisas Modernas de Consciência. Heresis, Niterói, 2000. p.29.
(5) Weil, Pierre. A Neurose do Paraíso Perdido. Cepa, Rio de Janeiro, 1987. p.34.
Sheldrake (op.cit.), p.29.
(6) Campbell, Joseph. O Poder do Mito. Palas Athena, SP, 1990. p.177.
(7) De acordo com Gheerbrant&Chevalier (Dictionaire des Symboles, Robert Laffont/Jupiter, Paris,1988), Hécate possui os dois aspectos da Mãe Natureza. Fertilidade, germinação, proteção da navegação e da pesca, prosperidade, eloquência, vitória, purificação; e ao mesmo tempo é a deusa dos espectros e dos terrores noturnos, dos fantasmas e dos monstros aterradores, mestra em feitiçaria. Nêmesis está associada à agricultura e dela depende a fertilidade ou não da Terra e consequentemente a sobrevivência humana. E Kali é a deusa do hinduísmo que destrói as ilusões. Ela dança sobre Shiva, o deus da Consciência, quando ele dorme, ou seja, quando a inconsciência está ativa e do seu corpo surge outro corpo igual, Shava, em sânscrito exatamente inconsciência.
(8) Sheldrake (op.cit.), p.30.
(9) Sheldrake (op.cit.), p.50.
(10) Idem, p.53.
(11) Idem, p.54.
(12) Idem, p.56.
(13) Ib., p.57-58.
(14) Idem, p.63.
(15) Para o melhor entendimento desta questão da ascenção contemporânea da demanda das qualidades da Mãe é absolutamente vital o estudo da obra dos biólogos Maturana e Varela
(16) Ver o Programa de Educação em Valores Universais da Associação Palas Athena, por exemplo através do artigo ROIZMAN, Laura Gorresio. Valores que não têm preço. In OURIQUES, Evandro Vieira (org.). Diálogo entre as Civilizações: a Experiência Brasileira. ONU. 2003. pp 181-189.
Sunday, 18 July 2004
A Voz Indígena
Artigo de Evandro Vieira Ouriques
O II Cumbre Continental de los Pueblos Indígenas de las Américas, em Quito, e a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC, Brasil, pela primeira vez com a participação oficial de povos indígenas, ambos em 2004, nos estimulam a entender -mais do que nunca- que vivemos um momento decisivo para a questão indígena em todo o mundo.
Com o aprofundamento brutal da crise gerada pelo materialismo, e a consequente re-valorização dos sistemas de entendimento e de ação concreta fundados no amor e no brincar , no diálogo, na cooperação e no respeito à ancestralidade cultural e biológica , a situação sócio-histórica indígena e a contribuição de sua cultura para a Humanidade passam a ocupar um lugar determinante.
Determinante porque escutar a voz indígena -que clama em todo o mundo por respeito, de maneira dramática- é escutar a voz indígena que está dentro de cada um de nós mesmos. Esta voz que nos fala do fundo de nossa consciência. Do fundo de nossa mente e de nosso coração, a respeito de nossa origem. Que nos identifica como uma só família -irmãos e irmãs. Partes da Totalidade. De uma totalidade sem totalitarismos. Totalidade aberta, livre e surpreendente.
Hoje esta consciência está quase esquecida, pois é uma outra lógica de "irmandade", a Big Brother, que articula apenas interesses egóicos de pessoas, comunidades, nações e corporações na atual e excludente globalização financeira neo-liberal. Todos (des)afinados na unidimensionalidade do desespero e da ignorância do individualismo competitivo e destrutivo. Motivados pela vã esperança e pela ardilosa ilusão do poder.
É muito importante perceber que a consciência de sermos uma só família, unos na totalidade das múltiplas manifestações, não é um pensamento. Não é uma idéia. Não é uma produção do raciocínio, no sentido de um monarca que governa sozinho, como a razão patriarcal e cartesiana faz na maneira ocidental de viver. Mas a consciência é o resultado da vivência profunda, em todas as dimensões, da experiência de se estar vivo. No mínimo o resultado da experiência real de se ter corpo, emoção, mente e espírito. É somente esta vivência multidimensional que nos permite descobrir a unidade da diversidade. Descobrir e agir com a consciência de que fazemos parte do Todo. Como nos ensina a voz indígena, o Planeta não nos pertence. Fazemos parte dele. E, isto, muda tudo.
A conexão com a origem permite superar os conflitos, sejam eles na psiquê, então para além da mera procura da satisfação dos desejos mesmo quando eles, manifestação do ego, desvinculam o social; no inter-relacionamento pessoal, com o retorno da existência de fato do outro, que deixa assim de ser apenas o alvo de nossa manipulação; na economia, que passa a ser solidária; na política, que ressuscita como o lugar da construção da democracia verdadeira; na sexualidade, que re-ganha o sentido sagrado, realização divina na Terra; no diálogo inter e intra-religioso, que mostra finalmente que todas as religiões são sempre interpretações culturais de uma realidade espiritual/carnal última que ultrapassa os egos dos religiosos e todos os nomes e todas as exclusividades de salvação.
Seja em Chiapas, no México, seja na dimensão escalatória do aterrador conflito do Oriente Médio, ou nas mais de 80 guerras em anadamento em todo o mundo, só há uma saída, por mais que nossa soberba queira complicar e recusar a existência de uma causa primeira e última para a crise: lembrarmo-nos, na ação, de nossa origem comum, que nos define como parte da totalidade, ela que é capaz de qualificar eticamente cada uma de nossas decisões de maneira a que elas produzam a coesão que falta nos dias de hoje, quando a voz indígena procura se fazer ouvir.
Escutemos esta voz, pois ela é a nossa própria voz. Dentro de cada um de nós, gravado em cada uma de nossas células e na raiz de todas as nossas civilizações fala a consciência indígena a respeito de sermos filhos de uma mesma Mãe . Pois, em verdade, quando, em ato de fé e de pura lógica, mergulhamos no encontro do que leva os vários nomes de Deus e da Deusa, do Silêncio, da Mutação e da Energia Universal, re-encontramos necessariamente nossos irmãos e irmãs indígenas em sua consciência de que a Natureza é viva . De que nossa Mãe primeira é a Terra. De que o princípio feminino tem importância decisiva, e é a partir dele que foram construídas as concepções cósmicas que estão no âmago original de todas as tradições espirituais antigas da Humanidade. Este âmago é a Mãe Universal, da qual toda mulher é uma manifestação terrena, uma manifestação do aspecto gerador e sedutor do sagrado mistério que sustenta e, continuamente, cria o mundo. Big-Bang que seja.
Desde as mais elaboradas cosmovisões as mais modestas práticas telúricas, já no neolítico e mesmo no paleolítico , encontramos sempre a mesma intuição central em relação à Mãe, que se repete como tema condutor: ela é a matriz. Ela é. A "Senhora do Lugar". Fonte de todas as formas vivas, de guardiã das crianças e matriz para a qual vão os mortos para que nela repousem, se regenerem e renasçam, de alguma forma, graças ao seu caráter santo .
"Devo pegar uma faca e rasgar o seio de minha mãe?", disse no final do século XIX um chefe da tribo Wanapum, em território hoje norte-americano, diante da pressão de uma cultura masculinamente dominante para que cultivasse e buscasse minerais no corpo de sua Mãe. "Então," prosseguiu ele, "quando eu morrer, ela não me tomará em seu seio para que eu repouse. Você me pede para escavar o chão procurando pedra! Posso escavar sob a sua pele à procura de seus ossos? Então, quando eu morrer, não poderei entrar em seu corpo para renascer. Você me pede para cortar grama e fazer feno e vendê-lo, e ficar rico como os homens brancos! Mas como eu ousaria cortar os cabelos de minha mãe?"
É por isto que constatamos em todo o mundo um grande crescimento da organização das culturas indígenas. A crise que vivemos é claramente o resultado da perda do sentido do Sagrado por nossa cultura, que tem como fundamento básico o esquecimento do esquecimento do Ser . Esquecendo o Ser esquece-se a voz indígena, pois é ela a primeira na Humanidade que fala da harmonização com ele: a Origem das Origens. Não é à toa que nossa civilização percebe a Natureza como morta, como uma mera fonte de recursos econômicos, bem como a seus filhos igualmente mortos, não mais sujeitos mas objetos, como tudo o mais, mal respirando, apenas consumidores e não mais vivos, na qualidade de pessoas.
Este quadro é que faz com que haja uma reação a esta obscuridade tremenda, e todos os sistemas de entendimento que percebem a natureza como viva passam hoje, necessariamente e cada vez mais, por um grande ressurgimento. Da atual sociedade drogada, adita do desejo do desejo, para a sociedade sagrada. Este é o caso destacado das tradições indígenas, pois elas "são a memória viva do tempo em que o ser caminhava com a floresta, os rios, as estrelas, e as montanhas no coração e exercia o fluir de si", como diz Kaká Werá Jecupé, o tapuia nascido em São Paulo e que criou o Instituto Arapoty.
São Trezentos Milhões Falando
O momento é tão especial para a voz indígena, sob as mais variadas maneiras, que até mesmo os setores dominantes da sociedade a procuram ouvir. Ou pelo menos deixar que a ouçam um pouco. Este é o caso da canonização de Juan Diego em 30 de julho de 2002. Pela primeira vez na história das Américas um indígena foi canonizado. O beato Juan Diego, um índio mexicano de origem chichimeca, cujo nome indígena original era Cuauhtloatzin, a quem o Vaticano reconhece que Nossa Senhora de Guadalupe apareceu várias vezes, teve sua santidade reconhecida em cerimônia celebrada pelo próprio Papa no México. Isto certamente é mais uma sincronicidade na direção do respeito à voz indígena dentro da tradição cristã. Ainda mais quando se sabe que a Virgem de Guadalupe é exatamente a Santa Padroeira das Américas, continente no qual foram lamentavelmente executados milhões e milhões de indígenas.
É este mesmo México que apresenta ao mundo a luta extraordinária da Frente Zapatista de Libertação , que quer que o governo reconheça os direitos dos povos indígenas daquele país. Vale lembrar que somente em se tratando dos astecas, que à época da chegada de Hernán Cortez eram uma civilização altamente sofisticada com 25 milhões de pessoas, o massacre resultou em 24 milhões de pessoas assassinadas em menos de um século.
Temos que ter realmente um cuidado muito especial com a questão indígena, pois estamos falando de povos cuja presença em suas terras, na maioria das quais foram expulsos, se remonta a tempos imemoriais. Presentes desde o Círculo Ártico às Américas, África e Ásia, calcula-se que hoje são cerca de 300 milhões de pessoas que vivem em mais de 70 países.
Quase sempre estes povos se encontram entre as populações mais vulneráveis e marginalizadas destes países. Isto se dá exatamente em função de que a civilização dominante se construiu matando dentro de si mesma a voz que fala da origem comum de todos e de tudo, com suas leis de amor, de diálogo e de cooperação. De respeito à Totalidade. É por isto que a exclusão econômica e social relegou os indígenas ao nível mais baixo de todos em termos sanitários, profissionais e sociais e os expôs e expõe a um enorme sofrimento. Se construímos uma civilização que tem como fundamento principal abolir o sentido de cooperação, que é a dinâmica própria da manutenção do sentido da totalidade, da harmonia cooperativa, é claro que são os indígenas que pagam o preço maior: a loucura, o suícidio, a prostituição, o alcoolismo, as doenças, a desagregação pessoal e social.
Sabemos que o tapar ouvidos à voz indígena destrói inclusive a maioria daqueles que ocupam as posições econômicas, políticas e sociais privilegiadas, pois eles são em verdade excluídos de si mesmos, de suas próprias essências, como nos mostram a corrupção, as drogas caríssimas, o crime organizado, o comportamento doentio que enche os consultórios terapêuticos, o dia-a-dia e os noticiários de todo o mundo.
Em verdade se aqueles que estão no poder mundano, e nós mesmos com o nosso poder mundano, fossem(os) conectados com o Sagrado, este que nos fala da origem comum e de suas leis, que nos fala da dimensão espiritual , eles (nós) seri(í)am(os) pessoas benéficas, que saberiam(os) se(nos) conduzir e assim conduzir(mos) seus povos, tais como soberanos (pois cada um de nós é ou poderia ser soberano em sua própria vida) justos e bondosos.
Como se sabe, uma das maneiras mais eficazes de avaliar a justiça e a bondade de um reino, pós-moderno que seja, é fazer o que a sabedoria antiga chinesa nos recomenda no I Ching: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. E percorrer os reinos atuais, aliás o reino economicamente globalizado atual, é constatar a existência de algo profundamente equivocado.
O que se chama de desenvolvimento econômico, movido pela opção unidimensional do poder humano ignorante da existência da Totalidade, envolve e atinge a todos sem levar em conta a especificidade de suas múltiplas histórias, de suas culturas, de suas línguas, de suas tradições, de suas necessidades e prioridades. Corta, sumariamente, todos os seus projetos de vida, vínculos econômicos, culturais e espirituais que são a essência da identidade do humano. Reduz-se tudo e todos ao jugo do lucro e da obtenção de poder. Com isto faz-se qualquer coisa que o ego queira, como se não existisse uma ordem provinda de uma dimensão não-humana, pré-cultural, que a tudo criou, sustenta e transforma. Esta ordem que, sem totalitarismos, dá coesão psíquica e social.
Lamentavelmente esta maneira ignorante de organizar a vida humana é trans-cultural e trans-étnica e vem destruindo as pessoas e os povos em todos os continentes, sejam eles habitados por brancos louros de olhos azuis, quanto negros de pele brilhante, quanto amarelos, mulatos, caboclos e de qualquer outra matiz de pele ou interna. Quanto mais próxima a cultura está consciente da origem comum mais este sistema lhe reserva um lugar de sofrimento. É fácil entender agora porque os indígenas estão na mais baixa escala social. Eles pagam o preço de serem a memória viva da Natureza enquanto viva.
Uma Voz que Cresce
A gravidade é tão extrema que o sistema da ONU, sobretudo nas duas últimas décadas, tem procurado sintonizar-se diretamente com este interesse cada vez maior pela voz indígena. Neste sentido é que tem havido uma presença crescente de representantes indígenas em fóruns internacionais, como no Grupo de Trabalho das Nacões Unidas sobre as Populações Indígenas, orgão da Subcomissão sobre a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, e naturalmente no Grupo de Trabalho sobre a Declaracão dos Direitos dos Povos Indígenas.
Um dos avanços mais significativos dos últimos tempos em termos internacionais foi a decisão tomada em julho de 2000 em relação à constituição de um Fórum Permanente das Nações Unidas para os Povos Indígenas, como orgão do Conselho Econômico e Social das Nações Unida (no qual no entanto ainda não temos um representante brasileiro) e que vem a ser o mais alto fórum já criado na ONU para cuidar deste assunto.
Os indígenas vêm lutando muito pela inclusão da denominação Povos Indígenas nos documentos oficiais, pela ratificação fundamental do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, que reconhece seus direitos no campo do Trabalho, pela abertura de espaços de participação em todos os níveis de decisão que lhes atingem, de cotas e inclusão da questão indígena nos Conselhos, nos Ministérios, nos organismos internacionais, pela demarcação e homologação das terras indígenas. Enfim, um sem número de lutas, pois praticamente tudo lhes foi negado uma vez que o paradigma Ocidental, como vimos, construiu-se na exata medida da proporção com a qual matou em si mesma a consciência de fazer parte de um todo, mergulhando na fantasia da separatividade. Esta destrutiva ilusão que os estados diferenciados de consciência , uma tecnologia espiritual tão utilizada nas culturas ancestrais -com ou sem as plantas sagradas (enteógenos)-, ajudam a superar.
Na dimensão brasileira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB consagrou a Campanha da Fraternidade de 2002 exatamente aos povos indígenas, com o tema "Por uma terra sem males". Mesmo que sejam procedentes críticas a esta Campanha, por seu acento explícito na Catequese, como se pode ver em vídeo preparado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, e veiculado na Rede Globo, quando os índios que aparecem são convertidos e aparecem todo o tempo em uma missa, sabemos que setores significativos da Igreja Católica são de fato progressistas e efetivamente estão dedicados a que se escute a voz indígena.
Sincronicamente a esta situação, por incrível que pareça, a população indígena no Brasil vem crescendo muito nas últimas duas décadas. Se nos anos 80 tínhamos cerca de 260 mil índios, na virada do milênio eles já eram aproximadamente 350 mil, e hoje a Fundação Nacional do Índio os estima em 540 mil, distribuídos em 206 nações indígenas localizadas em todos os estados da Federação, à exceção apenas do Piauí.
O que chama muita atenção neste quadro demográfico é que para cada cidadão urbano brasileiro que nasce hoje estão nascendo três índios. Isto é impressionante, pois traz, na medida em que assumamos a nossa parcela de responsabilidade no processo, uma enorme contribuição para que o Brasil e a Humanidade re-conecte com a Natureza enquanto viva, pois como diz Ailton Krenak, coordenador do Centro de Pesquisas Indígenas, do povo Krenak de Minas Gerais, "muitas comunidades indígenas, mesmo tendo sofrido enormes mudanças no aspecto mais aparente de sua cultura, especialmente no tocante à "cultura material" (que é representada nos adornos, objetos de uso ritual, ou domésticos)" mantêm "a força mais sutil da alma" e "sua herança mais ancestral permanece. Mesmo que transmutada, (ela) continua alimentando a identidade".
O Resgate do Princípio Feminino
O fundamento organizador básico desta identidade resgatada é a identidade do princípio feminino, como falei no início. Como os indígenas estão na escala mais baixa da sociedade por sua cultura ser estruturada de forma geral sob o princípio feminino, as suas mulheres estão mais abaixo ainda, exatamente por serem a sede direta deste princípio abominado em nossa sociedade. Que mãe deixaria seus filhos morrerem à míngua em nome de ter isto ou aquilo?
A amiga e indígena Eliane Potiguara , que incorpora o feminismo e o socialismo em sua pauta de luta, afirma que "é preciso resgatar as funções que a mulher indígena desempenhava antes do processo colonial, quando era venerada e tinha a última palavra na discussão dos problemas políticos. (…) Aos olhos da sociedade, as mulheres indígenas estão abaixo da última das camadas da sociedade. Indígenas, pobres, discriminadas, excluídas, invisíveis, mão-de-obra escrava em plantios de cana-de-açúcar, algodão e outras culturas.
Quando estão próximas à mineradoras, são objeto sexual de garimpeiros ou mineradores, como relatam muitas histórias que já ouvimos dos ianomâmis, em Roraima. Nas cidades, empurradas por alguma razão social e política de sua nação, tornam-se prostitutas nas grandes cidades, objetos de tráfico internacional de mulheres, empregadas domésticas ou operárias mal remuneradas. Urge um trabalho de conscientização nas aldeias contra a violência doméstica e sexual, contra o estupro, o assédio, o alcoolismo que resultam nas violências interpessoais, nas intrigas, nos distúrbios psicológicos, nos suicídios."
Eliane faz coro com quem acredita que Governo e ONG's devem implantar um programa imediato de defesa dos direitos reprodutivos e de saúde integral. Para ela, isto é urgente "nas nações que mais sofreram os resultados maléficos da neo-colonização, como os povos ressurgidos e os quilombolas", e chega a dizer que "para compreender os negros temos que compreender os índios pois os negros são os índios da África."
E ela está com toda a razão neste ponto. Essas nações têm consciência de sua identidade mas precisam de apoio em todos os sentidos, seja do apoio que vem de dentro delas mesmos, seja do apoio que venha da sociedade nacional e internacional, por exemplo através de uma organização como o Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e a United Religions Initiative-URI (www.uri.org).
O Perdão e a Mãe Universal
Quem está atento à questão indígena sabe que o diálogo inter-cultural e inter-religioso com eles enfrenta muitas vezes hoje uma espécie de movimento quase separatista em relação à todas as outras culturas defendido por parte de lideranças das populações originárias. Esta posição é muito presente e obriga uma estratégia especial. Muitos deles expressam constantemente sua revolta, pois existe um ressentimento muito profundo, que é perfeitamente compreensível. Ainda mais quando se leva em conta a enorme e variadíssima contribuição da cultura indígena para a Humanidade.
É muito fácil perceber a importância indígena. Já procurei mostrar aquela que é, para mim a mais importante de todas: ter o princípio da Natureza enquanto viva como o estruturador de suas cosmovisões. Pois é a partir desta conexão com a Mãe Universal que eles, por exemplo, descobriram o algodão, para o qual criaram todas as técnicas de colheita, fiação, tecelagem e tintura mais tarde importadas pelos europeus; foram eles também que descobriram o chocolate; e o milho, que era cultivado nas três américas, com cada povo com seus híbridos favoritos, que atingem dezenas de variedades, formatos, cores, sabores, nutrientes, entre eles o milho azul (hoje, no entanto, o milho é uniformizado pela indústria agro-pecuária no mundo todo); o amendoim também, original da costa brasileira; o tabaco, que os europeus transformaram de um costume medicinal e cerimonial em um vício mortal; a própria batata, que no início foi banida pelo clero pois não era mencionada na Bíblia; o tomate também; a mandioca que, apesar de venenosa em seu estado cru, já era depurada do ácido cianídrico pelos índios; e a seringueira, que deu origem à borracha e dispensa comentários acerca de sua importância.
Quem entre nós não conhece feijão, abóbora, pepino, chuchu, batata-doce, berinjela, alcachofra, pimentas, abacate, abacaxi, caju, mamão, maracujá, banana e cana-de-açúcar, por exemplo? Pois é tudo descoberta indígena. Trabalho indígena. Cultivo indígena. As várias ervas medicinais, para dar mais um exemplo, cujas fórmulas indígenas foram aperfeiçoadas pelo homem branco, compõem mais de três quartos de todas as drogas de origem vegetal conhecidas. Com exceção de algumas rubiáceas [espécies], nos lembra o holoterapeuta e etnobiólogo Rogério Favilla , não há nenhuma espécie utilizada na farmacopéia moderna cujas propriedades já não fossem conhecidas pelos índios. E ainda há muitas outras espécies que são desconhecidas pelo homem civilizado.
É o amigo Favilla quem esclarece: "Aos nativos pré-colombianos devemos, entre inúmeras coisas, a rica herança etnobotânica que revolucionaria a dietária e a farmacopéia comparativamente precária dos europeus colonizadores e de suas matrizes desde época das navegações. Não apenas apresentaram aos pasmos europeus as plantas em si, como o milho, o tomate, a batata, o tabaco, o cacau, a mandioca, o inhame, o feijão, o caju, a batata-doce, o abacate, o pepino, a berinjela, o abacaxi, o palmito, e tantas outras hoje presentes nos pratos de todo o mundo (dos que tem acesso aos alimentos, é claro), mas também ensinaram como cultivá-los e prepará-los adequadamente. Ao contrário dos que pensam serem os nativos criaturas obtusas, a arte do cultivo e melhoria genética através da cuidadosa seleção das linhagens e de técnicas sofisticadas de plantio e adubagem foi plenamente desenvolvida pelos ameríndios."
É muito interessante lembrar que, além disso, temos um exemplo arquetípico da importância indígena. Arquetípico porque diz respeito a sede do Império atual: os Estados Unidos. Quando os colonos patriarcas ingleses desembarcaram do Mayflower lá, tiveram suas vidas salvas pelos nativos, que os ensinaram como caçar o abundante peru, pescar o salmão e as trutas, e a plantar e estocar o milho. Foi esta sabedoria que permitiu que eles sobrevivessem ao primeiro inverno. Até hoje este momento decisivo é anualmente relembrado pelos EUA no importante feriado, e olha que eles são raros, de Thanksgiving Day.
Do alto de toda esta sabedoria a um só tempo humilde e por isto poderosa, os indígenas estão hoje diante do desafio de exercer uma das mais desafiadoras posições do crescimento humano, espiritual: a do perdão, e mais, da pura compaixão. Ao passo que as culturas responsáveis por esta barbaridade precisam compartilhar o mundo servindo o sagrado na voz indígena e os ajudando em tudo, de maneira a que eles, guardiões da Terra-Mãe, possam liberar a nossa re-integração à Mãe Divina.
Construindo uma Cultura de Cura e Paz
Dentro da contribuição indígena para a construção de uma cultura de cura e de paz, as plantas sagradas ocupam um lugar de grande destaque, pois as capacidades medicinais e/ou curativas delas são capazes realmente de promover resultados brilhantes, mesmo em pessoas habitualmente afastadas de sua natureza original e de suas inalienáveis arqui-relações com o reino vegetal.
Esta é uma questão muito importante mesmo, da qual tratarei especificamente em outra oportunidade . No entanto, sublinho que a tradição indígena ensina que a utilização dos processos curativos das plantas deve sempre ser movido pela consciência, no caso pela consciência das leis cósmicas. Isto nos interessa quando queremos escutar a voz indígena, visto que muitas pessoas buscam todo tipo de infusões, poções, elixires, etc., mas não conseguem encontrar a cura, pois não querem reconhecer e corrigir os próprios erros que contribuíram para o surgimento de seus males. Ou seja, modificaram o nível de consciência que têm, e que gera dieta prejudicial, problemas afetivo-emocionais, hábitos errados de higiene, vícios, etc.
Para a voz indígena, como para todas as tradições espirituais antigas da humanidade, a verdadeira cura é um processo totalmente dependente da conduta e do comportamento psíquico do indivíduo, que se não for condizente com a normalidade fluente da natureza só gerará resultados frustrantes, até mesmo com o uso das plantas de poder. Precisamos mudar a nossa compreensão do mundo.
É desta forma que a voz indígena vive um momento decisivo de sua história. Que ela sirva de inspiração a todos os encontros que cada vem mais vêm ocorrendo no mundo a respeito dela. Exatamente porque a Humanidade vive um momento decisivo de sua história. Como Pierre Weil esclareceu, a busca constante de felicidade que caracteriza o ser humano confirma a presença de uma memória enterrada no âmago de sua existência. A memória de um estado de plenitude sem obstáculos e de êxtase permanente. É deste estado que nos fala a Voz Indígena.
……………………..
Este artigo (escrito originalmente em 2002 para o Ciclo Preparatório da United Rligions Initiative Global Assembly, tem 17 notas disponíveis para o interessado) está publicado em vários sites, no Brasil e na América Latina, entre eles:
http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91
http://www.uri.org/rio2002/port/frame_ciclo.htm
http://www.consciencia.net/cidadania/ouriques01.html
http://brazil-brasil.com/content/view/127/
Grande parte dele foi incorporado ao estudo É possível re-aprender a Sabedoria da Mãe, afagar a Terra, transformar a Realidade: o Modelo de Comunicação Cosmodinâmico e Multi-interativo e a questão do Diálogo, com o qual o autor concluiu o citado livro Diálogo entre as Civilizações: a Experiência Brasileira (www.unicrio.org,br, Biblioteca), que organizou e editou a convite da ONU em 2003, com o apoio institucional da UNESCO, da Associação Palas Athena, do Viva Rio e da UFRJ, através do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON/ECO/UFRJ, que criou e dirige na Escola de Comunicação desde 1981.
O II Cumbre Continental de los Pueblos Indígenas de las Américas, em Quito, e a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC, Brasil, pela primeira vez com a participação oficial de povos indígenas, ambos em 2004, nos estimulam a entender -mais do que nunca- que vivemos um momento decisivo para a questão indígena em todo o mundo.
Com o aprofundamento brutal da crise gerada pelo materialismo, e a consequente re-valorização dos sistemas de entendimento e de ação concreta fundados no amor e no brincar , no diálogo, na cooperação e no respeito à ancestralidade cultural e biológica , a situação sócio-histórica indígena e a contribuição de sua cultura para a Humanidade passam a ocupar um lugar determinante.
Determinante porque escutar a voz indígena -que clama em todo o mundo por respeito, de maneira dramática- é escutar a voz indígena que está dentro de cada um de nós mesmos. Esta voz que nos fala do fundo de nossa consciência. Do fundo de nossa mente e de nosso coração, a respeito de nossa origem. Que nos identifica como uma só família -irmãos e irmãs. Partes da Totalidade. De uma totalidade sem totalitarismos. Totalidade aberta, livre e surpreendente.
Hoje esta consciência está quase esquecida, pois é uma outra lógica de "irmandade", a Big Brother, que articula apenas interesses egóicos de pessoas, comunidades, nações e corporações na atual e excludente globalização financeira neo-liberal. Todos (des)afinados na unidimensionalidade do desespero e da ignorância do individualismo competitivo e destrutivo. Motivados pela vã esperança e pela ardilosa ilusão do poder.
É muito importante perceber que a consciência de sermos uma só família, unos na totalidade das múltiplas manifestações, não é um pensamento. Não é uma idéia. Não é uma produção do raciocínio, no sentido de um monarca que governa sozinho, como a razão patriarcal e cartesiana faz na maneira ocidental de viver. Mas a consciência é o resultado da vivência profunda, em todas as dimensões, da experiência de se estar vivo. No mínimo o resultado da experiência real de se ter corpo, emoção, mente e espírito. É somente esta vivência multidimensional que nos permite descobrir a unidade da diversidade. Descobrir e agir com a consciência de que fazemos parte do Todo. Como nos ensina a voz indígena, o Planeta não nos pertence. Fazemos parte dele. E, isto, muda tudo.
A conexão com a origem permite superar os conflitos, sejam eles na psiquê, então para além da mera procura da satisfação dos desejos mesmo quando eles, manifestação do ego, desvinculam o social; no inter-relacionamento pessoal, com o retorno da existência de fato do outro, que deixa assim de ser apenas o alvo de nossa manipulação; na economia, que passa a ser solidária; na política, que ressuscita como o lugar da construção da democracia verdadeira; na sexualidade, que re-ganha o sentido sagrado, realização divina na Terra; no diálogo inter e intra-religioso, que mostra finalmente que todas as religiões são sempre interpretações culturais de uma realidade espiritual/carnal última que ultrapassa os egos dos religiosos e todos os nomes e todas as exclusividades de salvação.
Seja em Chiapas, no México, seja na dimensão escalatória do aterrador conflito do Oriente Médio, ou nas mais de 80 guerras em anadamento em todo o mundo, só há uma saída, por mais que nossa soberba queira complicar e recusar a existência de uma causa primeira e última para a crise: lembrarmo-nos, na ação, de nossa origem comum, que nos define como parte da totalidade, ela que é capaz de qualificar eticamente cada uma de nossas decisões de maneira a que elas produzam a coesão que falta nos dias de hoje, quando a voz indígena procura se fazer ouvir.
Escutemos esta voz, pois ela é a nossa própria voz. Dentro de cada um de nós, gravado em cada uma de nossas células e na raiz de todas as nossas civilizações fala a consciência indígena a respeito de sermos filhos de uma mesma Mãe . Pois, em verdade, quando, em ato de fé e de pura lógica, mergulhamos no encontro do que leva os vários nomes de Deus e da Deusa, do Silêncio, da Mutação e da Energia Universal, re-encontramos necessariamente nossos irmãos e irmãs indígenas em sua consciência de que a Natureza é viva . De que nossa Mãe primeira é a Terra. De que o princípio feminino tem importância decisiva, e é a partir dele que foram construídas as concepções cósmicas que estão no âmago original de todas as tradições espirituais antigas da Humanidade. Este âmago é a Mãe Universal, da qual toda mulher é uma manifestação terrena, uma manifestação do aspecto gerador e sedutor do sagrado mistério que sustenta e, continuamente, cria o mundo. Big-Bang que seja.
Desde as mais elaboradas cosmovisões as mais modestas práticas telúricas, já no neolítico e mesmo no paleolítico , encontramos sempre a mesma intuição central em relação à Mãe, que se repete como tema condutor: ela é a matriz. Ela é. A "Senhora do Lugar". Fonte de todas as formas vivas, de guardiã das crianças e matriz para a qual vão os mortos para que nela repousem, se regenerem e renasçam, de alguma forma, graças ao seu caráter santo .
"Devo pegar uma faca e rasgar o seio de minha mãe?", disse no final do século XIX um chefe da tribo Wanapum, em território hoje norte-americano, diante da pressão de uma cultura masculinamente dominante para que cultivasse e buscasse minerais no corpo de sua Mãe. "Então," prosseguiu ele, "quando eu morrer, ela não me tomará em seu seio para que eu repouse. Você me pede para escavar o chão procurando pedra! Posso escavar sob a sua pele à procura de seus ossos? Então, quando eu morrer, não poderei entrar em seu corpo para renascer. Você me pede para cortar grama e fazer feno e vendê-lo, e ficar rico como os homens brancos! Mas como eu ousaria cortar os cabelos de minha mãe?"
É por isto que constatamos em todo o mundo um grande crescimento da organização das culturas indígenas. A crise que vivemos é claramente o resultado da perda do sentido do Sagrado por nossa cultura, que tem como fundamento básico o esquecimento do esquecimento do Ser . Esquecendo o Ser esquece-se a voz indígena, pois é ela a primeira na Humanidade que fala da harmonização com ele: a Origem das Origens. Não é à toa que nossa civilização percebe a Natureza como morta, como uma mera fonte de recursos econômicos, bem como a seus filhos igualmente mortos, não mais sujeitos mas objetos, como tudo o mais, mal respirando, apenas consumidores e não mais vivos, na qualidade de pessoas.
Este quadro é que faz com que haja uma reação a esta obscuridade tremenda, e todos os sistemas de entendimento que percebem a natureza como viva passam hoje, necessariamente e cada vez mais, por um grande ressurgimento. Da atual sociedade drogada, adita do desejo do desejo, para a sociedade sagrada. Este é o caso destacado das tradições indígenas, pois elas "são a memória viva do tempo em que o ser caminhava com a floresta, os rios, as estrelas, e as montanhas no coração e exercia o fluir de si", como diz Kaká Werá Jecupé, o tapuia nascido em São Paulo e que criou o Instituto Arapoty.
São Trezentos Milhões Falando
O momento é tão especial para a voz indígena, sob as mais variadas maneiras, que até mesmo os setores dominantes da sociedade a procuram ouvir. Ou pelo menos deixar que a ouçam um pouco. Este é o caso da canonização de Juan Diego em 30 de julho de 2002. Pela primeira vez na história das Américas um indígena foi canonizado. O beato Juan Diego, um índio mexicano de origem chichimeca, cujo nome indígena original era Cuauhtloatzin, a quem o Vaticano reconhece que Nossa Senhora de Guadalupe apareceu várias vezes, teve sua santidade reconhecida em cerimônia celebrada pelo próprio Papa no México. Isto certamente é mais uma sincronicidade na direção do respeito à voz indígena dentro da tradição cristã. Ainda mais quando se sabe que a Virgem de Guadalupe é exatamente a Santa Padroeira das Américas, continente no qual foram lamentavelmente executados milhões e milhões de indígenas.
É este mesmo México que apresenta ao mundo a luta extraordinária da Frente Zapatista de Libertação , que quer que o governo reconheça os direitos dos povos indígenas daquele país. Vale lembrar que somente em se tratando dos astecas, que à época da chegada de Hernán Cortez eram uma civilização altamente sofisticada com 25 milhões de pessoas, o massacre resultou em 24 milhões de pessoas assassinadas em menos de um século.
Temos que ter realmente um cuidado muito especial com a questão indígena, pois estamos falando de povos cuja presença em suas terras, na maioria das quais foram expulsos, se remonta a tempos imemoriais. Presentes desde o Círculo Ártico às Américas, África e Ásia, calcula-se que hoje são cerca de 300 milhões de pessoas que vivem em mais de 70 países.
Quase sempre estes povos se encontram entre as populações mais vulneráveis e marginalizadas destes países. Isto se dá exatamente em função de que a civilização dominante se construiu matando dentro de si mesma a voz que fala da origem comum de todos e de tudo, com suas leis de amor, de diálogo e de cooperação. De respeito à Totalidade. É por isto que a exclusão econômica e social relegou os indígenas ao nível mais baixo de todos em termos sanitários, profissionais e sociais e os expôs e expõe a um enorme sofrimento. Se construímos uma civilização que tem como fundamento principal abolir o sentido de cooperação, que é a dinâmica própria da manutenção do sentido da totalidade, da harmonia cooperativa, é claro que são os indígenas que pagam o preço maior: a loucura, o suícidio, a prostituição, o alcoolismo, as doenças, a desagregação pessoal e social.
Sabemos que o tapar ouvidos à voz indígena destrói inclusive a maioria daqueles que ocupam as posições econômicas, políticas e sociais privilegiadas, pois eles são em verdade excluídos de si mesmos, de suas próprias essências, como nos mostram a corrupção, as drogas caríssimas, o crime organizado, o comportamento doentio que enche os consultórios terapêuticos, o dia-a-dia e os noticiários de todo o mundo.
Em verdade se aqueles que estão no poder mundano, e nós mesmos com o nosso poder mundano, fossem(os) conectados com o Sagrado, este que nos fala da origem comum e de suas leis, que nos fala da dimensão espiritual , eles (nós) seri(í)am(os) pessoas benéficas, que saberiam(os) se(nos) conduzir e assim conduzir(mos) seus povos, tais como soberanos (pois cada um de nós é ou poderia ser soberano em sua própria vida) justos e bondosos.
Como se sabe, uma das maneiras mais eficazes de avaliar a justiça e a bondade de um reino, pós-moderno que seja, é fazer o que a sabedoria antiga chinesa nos recomenda no I Ching: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. E percorrer os reinos atuais, aliás o reino economicamente globalizado atual, é constatar a existência de algo profundamente equivocado.
O que se chama de desenvolvimento econômico, movido pela opção unidimensional do poder humano ignorante da existência da Totalidade, envolve e atinge a todos sem levar em conta a especificidade de suas múltiplas histórias, de suas culturas, de suas línguas, de suas tradições, de suas necessidades e prioridades. Corta, sumariamente, todos os seus projetos de vida, vínculos econômicos, culturais e espirituais que são a essência da identidade do humano. Reduz-se tudo e todos ao jugo do lucro e da obtenção de poder. Com isto faz-se qualquer coisa que o ego queira, como se não existisse uma ordem provinda de uma dimensão não-humana, pré-cultural, que a tudo criou, sustenta e transforma. Esta ordem que, sem totalitarismos, dá coesão psíquica e social.
Lamentavelmente esta maneira ignorante de organizar a vida humana é trans-cultural e trans-étnica e vem destruindo as pessoas e os povos em todos os continentes, sejam eles habitados por brancos louros de olhos azuis, quanto negros de pele brilhante, quanto amarelos, mulatos, caboclos e de qualquer outra matiz de pele ou interna. Quanto mais próxima a cultura está consciente da origem comum mais este sistema lhe reserva um lugar de sofrimento. É fácil entender agora porque os indígenas estão na mais baixa escala social. Eles pagam o preço de serem a memória viva da Natureza enquanto viva.
Uma Voz que Cresce
A gravidade é tão extrema que o sistema da ONU, sobretudo nas duas últimas décadas, tem procurado sintonizar-se diretamente com este interesse cada vez maior pela voz indígena. Neste sentido é que tem havido uma presença crescente de representantes indígenas em fóruns internacionais, como no Grupo de Trabalho das Nacões Unidas sobre as Populações Indígenas, orgão da Subcomissão sobre a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, e naturalmente no Grupo de Trabalho sobre a Declaracão dos Direitos dos Povos Indígenas.
Um dos avanços mais significativos dos últimos tempos em termos internacionais foi a decisão tomada em julho de 2000 em relação à constituição de um Fórum Permanente das Nações Unidas para os Povos Indígenas, como orgão do Conselho Econômico e Social das Nações Unida (no qual no entanto ainda não temos um representante brasileiro) e que vem a ser o mais alto fórum já criado na ONU para cuidar deste assunto.
Os indígenas vêm lutando muito pela inclusão da denominação Povos Indígenas nos documentos oficiais, pela ratificação fundamental do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, que reconhece seus direitos no campo do Trabalho, pela abertura de espaços de participação em todos os níveis de decisão que lhes atingem, de cotas e inclusão da questão indígena nos Conselhos, nos Ministérios, nos organismos internacionais, pela demarcação e homologação das terras indígenas. Enfim, um sem número de lutas, pois praticamente tudo lhes foi negado uma vez que o paradigma Ocidental, como vimos, construiu-se na exata medida da proporção com a qual matou em si mesma a consciência de fazer parte de um todo, mergulhando na fantasia da separatividade. Esta destrutiva ilusão que os estados diferenciados de consciência , uma tecnologia espiritual tão utilizada nas culturas ancestrais -com ou sem as plantas sagradas (enteógenos)-, ajudam a superar.
Na dimensão brasileira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB consagrou a Campanha da Fraternidade de 2002 exatamente aos povos indígenas, com o tema "Por uma terra sem males". Mesmo que sejam procedentes críticas a esta Campanha, por seu acento explícito na Catequese, como se pode ver em vídeo preparado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, e veiculado na Rede Globo, quando os índios que aparecem são convertidos e aparecem todo o tempo em uma missa, sabemos que setores significativos da Igreja Católica são de fato progressistas e efetivamente estão dedicados a que se escute a voz indígena.
Sincronicamente a esta situação, por incrível que pareça, a população indígena no Brasil vem crescendo muito nas últimas duas décadas. Se nos anos 80 tínhamos cerca de 260 mil índios, na virada do milênio eles já eram aproximadamente 350 mil, e hoje a Fundação Nacional do Índio os estima em 540 mil, distribuídos em 206 nações indígenas localizadas em todos os estados da Federação, à exceção apenas do Piauí.
O que chama muita atenção neste quadro demográfico é que para cada cidadão urbano brasileiro que nasce hoje estão nascendo três índios. Isto é impressionante, pois traz, na medida em que assumamos a nossa parcela de responsabilidade no processo, uma enorme contribuição para que o Brasil e a Humanidade re-conecte com a Natureza enquanto viva, pois como diz Ailton Krenak, coordenador do Centro de Pesquisas Indígenas, do povo Krenak de Minas Gerais, "muitas comunidades indígenas, mesmo tendo sofrido enormes mudanças no aspecto mais aparente de sua cultura, especialmente no tocante à "cultura material" (que é representada nos adornos, objetos de uso ritual, ou domésticos)" mantêm "a força mais sutil da alma" e "sua herança mais ancestral permanece. Mesmo que transmutada, (ela) continua alimentando a identidade".
O Resgate do Princípio Feminino
O fundamento organizador básico desta identidade resgatada é a identidade do princípio feminino, como falei no início. Como os indígenas estão na escala mais baixa da sociedade por sua cultura ser estruturada de forma geral sob o princípio feminino, as suas mulheres estão mais abaixo ainda, exatamente por serem a sede direta deste princípio abominado em nossa sociedade. Que mãe deixaria seus filhos morrerem à míngua em nome de ter isto ou aquilo?
A amiga e indígena Eliane Potiguara , que incorpora o feminismo e o socialismo em sua pauta de luta, afirma que "é preciso resgatar as funções que a mulher indígena desempenhava antes do processo colonial, quando era venerada e tinha a última palavra na discussão dos problemas políticos. (…) Aos olhos da sociedade, as mulheres indígenas estão abaixo da última das camadas da sociedade. Indígenas, pobres, discriminadas, excluídas, invisíveis, mão-de-obra escrava em plantios de cana-de-açúcar, algodão e outras culturas.
Quando estão próximas à mineradoras, são objeto sexual de garimpeiros ou mineradores, como relatam muitas histórias que já ouvimos dos ianomâmis, em Roraima. Nas cidades, empurradas por alguma razão social e política de sua nação, tornam-se prostitutas nas grandes cidades, objetos de tráfico internacional de mulheres, empregadas domésticas ou operárias mal remuneradas. Urge um trabalho de conscientização nas aldeias contra a violência doméstica e sexual, contra o estupro, o assédio, o alcoolismo que resultam nas violências interpessoais, nas intrigas, nos distúrbios psicológicos, nos suicídios."
Eliane faz coro com quem acredita que Governo e ONG's devem implantar um programa imediato de defesa dos direitos reprodutivos e de saúde integral. Para ela, isto é urgente "nas nações que mais sofreram os resultados maléficos da neo-colonização, como os povos ressurgidos e os quilombolas", e chega a dizer que "para compreender os negros temos que compreender os índios pois os negros são os índios da África."
E ela está com toda a razão neste ponto. Essas nações têm consciência de sua identidade mas precisam de apoio em todos os sentidos, seja do apoio que vem de dentro delas mesmos, seja do apoio que venha da sociedade nacional e internacional, por exemplo através de uma organização como o Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e a United Religions Initiative-URI (www.uri.org).
O Perdão e a Mãe Universal
Quem está atento à questão indígena sabe que o diálogo inter-cultural e inter-religioso com eles enfrenta muitas vezes hoje uma espécie de movimento quase separatista em relação à todas as outras culturas defendido por parte de lideranças das populações originárias. Esta posição é muito presente e obriga uma estratégia especial. Muitos deles expressam constantemente sua revolta, pois existe um ressentimento muito profundo, que é perfeitamente compreensível. Ainda mais quando se leva em conta a enorme e variadíssima contribuição da cultura indígena para a Humanidade.
É muito fácil perceber a importância indígena. Já procurei mostrar aquela que é, para mim a mais importante de todas: ter o princípio da Natureza enquanto viva como o estruturador de suas cosmovisões. Pois é a partir desta conexão com a Mãe Universal que eles, por exemplo, descobriram o algodão, para o qual criaram todas as técnicas de colheita, fiação, tecelagem e tintura mais tarde importadas pelos europeus; foram eles também que descobriram o chocolate; e o milho, que era cultivado nas três américas, com cada povo com seus híbridos favoritos, que atingem dezenas de variedades, formatos, cores, sabores, nutrientes, entre eles o milho azul (hoje, no entanto, o milho é uniformizado pela indústria agro-pecuária no mundo todo); o amendoim também, original da costa brasileira; o tabaco, que os europeus transformaram de um costume medicinal e cerimonial em um vício mortal; a própria batata, que no início foi banida pelo clero pois não era mencionada na Bíblia; o tomate também; a mandioca que, apesar de venenosa em seu estado cru, já era depurada do ácido cianídrico pelos índios; e a seringueira, que deu origem à borracha e dispensa comentários acerca de sua importância.
Quem entre nós não conhece feijão, abóbora, pepino, chuchu, batata-doce, berinjela, alcachofra, pimentas, abacate, abacaxi, caju, mamão, maracujá, banana e cana-de-açúcar, por exemplo? Pois é tudo descoberta indígena. Trabalho indígena. Cultivo indígena. As várias ervas medicinais, para dar mais um exemplo, cujas fórmulas indígenas foram aperfeiçoadas pelo homem branco, compõem mais de três quartos de todas as drogas de origem vegetal conhecidas. Com exceção de algumas rubiáceas [espécies], nos lembra o holoterapeuta e etnobiólogo Rogério Favilla , não há nenhuma espécie utilizada na farmacopéia moderna cujas propriedades já não fossem conhecidas pelos índios. E ainda há muitas outras espécies que são desconhecidas pelo homem civilizado.
É o amigo Favilla quem esclarece: "Aos nativos pré-colombianos devemos, entre inúmeras coisas, a rica herança etnobotânica que revolucionaria a dietária e a farmacopéia comparativamente precária dos europeus colonizadores e de suas matrizes desde época das navegações. Não apenas apresentaram aos pasmos europeus as plantas em si, como o milho, o tomate, a batata, o tabaco, o cacau, a mandioca, o inhame, o feijão, o caju, a batata-doce, o abacate, o pepino, a berinjela, o abacaxi, o palmito, e tantas outras hoje presentes nos pratos de todo o mundo (dos que tem acesso aos alimentos, é claro), mas também ensinaram como cultivá-los e prepará-los adequadamente. Ao contrário dos que pensam serem os nativos criaturas obtusas, a arte do cultivo e melhoria genética através da cuidadosa seleção das linhagens e de técnicas sofisticadas de plantio e adubagem foi plenamente desenvolvida pelos ameríndios."
É muito interessante lembrar que, além disso, temos um exemplo arquetípico da importância indígena. Arquetípico porque diz respeito a sede do Império atual: os Estados Unidos. Quando os colonos patriarcas ingleses desembarcaram do Mayflower lá, tiveram suas vidas salvas pelos nativos, que os ensinaram como caçar o abundante peru, pescar o salmão e as trutas, e a plantar e estocar o milho. Foi esta sabedoria que permitiu que eles sobrevivessem ao primeiro inverno. Até hoje este momento decisivo é anualmente relembrado pelos EUA no importante feriado, e olha que eles são raros, de Thanksgiving Day.
Do alto de toda esta sabedoria a um só tempo humilde e por isto poderosa, os indígenas estão hoje diante do desafio de exercer uma das mais desafiadoras posições do crescimento humano, espiritual: a do perdão, e mais, da pura compaixão. Ao passo que as culturas responsáveis por esta barbaridade precisam compartilhar o mundo servindo o sagrado na voz indígena e os ajudando em tudo, de maneira a que eles, guardiões da Terra-Mãe, possam liberar a nossa re-integração à Mãe Divina.
Construindo uma Cultura de Cura e Paz
Dentro da contribuição indígena para a construção de uma cultura de cura e de paz, as plantas sagradas ocupam um lugar de grande destaque, pois as capacidades medicinais e/ou curativas delas são capazes realmente de promover resultados brilhantes, mesmo em pessoas habitualmente afastadas de sua natureza original e de suas inalienáveis arqui-relações com o reino vegetal.
Esta é uma questão muito importante mesmo, da qual tratarei especificamente em outra oportunidade . No entanto, sublinho que a tradição indígena ensina que a utilização dos processos curativos das plantas deve sempre ser movido pela consciência, no caso pela consciência das leis cósmicas. Isto nos interessa quando queremos escutar a voz indígena, visto que muitas pessoas buscam todo tipo de infusões, poções, elixires, etc., mas não conseguem encontrar a cura, pois não querem reconhecer e corrigir os próprios erros que contribuíram para o surgimento de seus males. Ou seja, modificaram o nível de consciência que têm, e que gera dieta prejudicial, problemas afetivo-emocionais, hábitos errados de higiene, vícios, etc.
Para a voz indígena, como para todas as tradições espirituais antigas da humanidade, a verdadeira cura é um processo totalmente dependente da conduta e do comportamento psíquico do indivíduo, que se não for condizente com a normalidade fluente da natureza só gerará resultados frustrantes, até mesmo com o uso das plantas de poder. Precisamos mudar a nossa compreensão do mundo.
É desta forma que a voz indígena vive um momento decisivo de sua história. Que ela sirva de inspiração a todos os encontros que cada vem mais vêm ocorrendo no mundo a respeito dela. Exatamente porque a Humanidade vive um momento decisivo de sua história. Como Pierre Weil esclareceu, a busca constante de felicidade que caracteriza o ser humano confirma a presença de uma memória enterrada no âmago de sua existência. A memória de um estado de plenitude sem obstáculos e de êxtase permanente. É deste estado que nos fala a Voz Indígena.
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Este artigo (escrito originalmente em 2002 para o Ciclo Preparatório da United Rligions Initiative Global Assembly, tem 17 notas disponíveis para o interessado) está publicado em vários sites, no Brasil e na América Latina, entre eles:
http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91
http://www.uri.org/rio2002/port/frame_ciclo.htm
http://www.consciencia.net/cidadania/ouriques01.html
http://brazil-brasil.com/content/view/127/
Grande parte dele foi incorporado ao estudo É possível re-aprender a Sabedoria da Mãe, afagar a Terra, transformar a Realidade: o Modelo de Comunicação Cosmodinâmico e Multi-interativo e a questão do Diálogo, com o qual o autor concluiu o citado livro Diálogo entre as Civilizações: a Experiência Brasileira (www.unicrio.org,br, Biblioteca), que organizou e editou a convite da ONU em 2003, com o apoio institucional da UNESCO, da Associação Palas Athena, do Viva Rio e da UFRJ, através do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON/ECO/UFRJ, que criou e dirige na Escola de Comunicação desde 1981.
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