Sunday 18 July, 2004

A Voz Indígena

Artigo de Evandro Vieira Ouriques

O II Cumbre Continental de los Pueblos Indígenas de las Américas, em Quito, e a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC, Brasil, pela primeira vez com a participação oficial de povos indígenas, ambos em 2004, nos estimulam a entender -mais do que nunca- que vivemos um momento decisivo para a questão indígena em todo o mundo.

Com o aprofundamento brutal da crise gerada pelo materialismo, e a consequente re-valorização dos sistemas de entendimento e de ação concreta fundados no amor e no brincar , no diálogo, na cooperação e no respeito à ancestralidade cultural e biológica , a situação sócio-histórica indígena e a contribuição de sua cultura para a Humanidade passam a ocupar um lugar determinante.

Determinante porque escutar a voz indígena -que clama em todo o mundo por respeito, de maneira dramática- é escutar a voz indígena que está dentro de cada um de nós mesmos. Esta voz que nos fala do fundo de nossa consciência. Do fundo de nossa mente e de nosso coração, a respeito de nossa origem. Que nos identifica como uma só família -irmãos e irmãs. Partes da Totalidade. De uma totalidade sem totalitarismos. Totalidade aberta, livre e surpreendente.

Hoje esta consciência está quase esquecida, pois é uma outra lógica de "irmandade", a Big Brother, que articula apenas interesses egóicos de pessoas, comunidades, nações e corporações na atual e excludente globalização financeira neo-liberal. Todos (des)afinados na unidimensionalidade do desespero e da ignorância do individualismo competitivo e destrutivo. Motivados pela vã esperança e pela ardilosa ilusão do poder.

É muito importante perceber que a consciência de sermos uma só família, unos na totalidade das múltiplas manifestações, não é um pensamento. Não é uma idéia. Não é uma produção do raciocínio, no sentido de um monarca que governa sozinho, como a razão patriarcal e cartesiana faz na maneira ocidental de viver. Mas a consciência é o resultado da vivência profunda, em todas as dimensões, da experiência de se estar vivo. No mínimo o resultado da experiência real de se ter corpo, emoção, mente e espírito. É somente esta vivência multidimensional que nos permite descobrir a unidade da diversidade. Descobrir e agir com a consciência de que fazemos parte do Todo. Como nos ensina a voz indígena, o Planeta não nos pertence. Fazemos parte dele. E, isto, muda tudo.

A conexão com a origem permite superar os conflitos, sejam eles na psiquê, então para além da mera procura da satisfação dos desejos mesmo quando eles, manifestação do ego, desvinculam o social; no inter-relacionamento pessoal, com o retorno da existência de fato do outro, que deixa assim de ser apenas o alvo de nossa manipulação; na economia, que passa a ser solidária; na política, que ressuscita como o lugar da construção da democracia verdadeira; na sexualidade, que re-ganha o sentido sagrado, realização divina na Terra; no diálogo inter e intra-religioso, que mostra finalmente que todas as religiões são sempre interpretações culturais de uma realidade espiritual/carnal última que ultrapassa os egos dos religiosos e todos os nomes e todas as exclusividades de salvação.

Seja em Chiapas, no México, seja na dimensão escalatória do aterrador conflito do Oriente Médio, ou nas mais de 80 guerras em anadamento em todo o mundo, só há uma saída, por mais que nossa soberba queira complicar e recusar a existência de uma causa primeira e última para a crise: lembrarmo-nos, na ação, de nossa origem comum, que nos define como parte da totalidade, ela que é capaz de qualificar eticamente cada uma de nossas decisões de maneira a que elas produzam a coesão que falta nos dias de hoje, quando a voz indígena procura se fazer ouvir.

Escutemos esta voz, pois ela é a nossa própria voz. Dentro de cada um de nós, gravado em cada uma de nossas células e na raiz de todas as nossas civilizações fala a consciência indígena a respeito de sermos filhos de uma mesma Mãe . Pois, em verdade, quando, em ato de fé e de pura lógica, mergulhamos no encontro do que leva os vários nomes de Deus e da Deusa, do Silêncio, da Mutação e da Energia Universal, re-encontramos necessariamente nossos irmãos e irmãs indígenas em sua consciência de que a Natureza é viva . De que nossa Mãe primeira é a Terra. De que o princípio feminino tem importância decisiva, e é a partir dele que foram construídas as concepções cósmicas que estão no âmago original de todas as tradições espirituais antigas da Humanidade. Este âmago é a Mãe Universal, da qual toda mulher é uma manifestação terrena, uma manifestação do aspecto gerador e sedutor do sagrado mistério que sustenta e, continuamente, cria o mundo. Big-Bang que seja.

Desde as mais elaboradas cosmovisões as mais modestas práticas telúricas, já no neolítico e mesmo no paleolítico , encontramos sempre a mesma intuição central em relação à Mãe, que se repete como tema condutor: ela é a matriz. Ela é. A "Senhora do Lugar". Fonte de todas as formas vivas, de guardiã das crianças e matriz para a qual vão os mortos para que nela repousem, se regenerem e renasçam, de alguma forma, graças ao seu caráter santo .

"Devo pegar uma faca e rasgar o seio de minha mãe?", disse no final do século XIX um chefe da tribo Wanapum, em território hoje norte-americano, diante da pressão de uma cultura masculinamente dominante para que cultivasse e buscasse minerais no corpo de sua Mãe. "Então," prosseguiu ele, "quando eu morrer, ela não me tomará em seu seio para que eu repouse. Você me pede para escavar o chão procurando pedra! Posso escavar sob a sua pele à procura de seus ossos? Então, quando eu morrer, não poderei entrar em seu corpo para renascer. Você me pede para cortar grama e fazer feno e vendê-lo, e ficar rico como os homens brancos! Mas como eu ousaria cortar os cabelos de minha mãe?"

É por isto que constatamos em todo o mundo um grande crescimento da organização das culturas indígenas. A crise que vivemos é claramente o resultado da perda do sentido do Sagrado por nossa cultura, que tem como fundamento básico o esquecimento do esquecimento do Ser . Esquecendo o Ser esquece-se a voz indígena, pois é ela a primeira na Humanidade que fala da harmonização com ele: a Origem das Origens. Não é à toa que nossa civilização percebe a Natureza como morta, como uma mera fonte de recursos econômicos, bem como a seus filhos igualmente mortos, não mais sujeitos mas objetos, como tudo o mais, mal respirando, apenas consumidores e não mais vivos, na qualidade de pessoas.

Este quadro é que faz com que haja uma reação a esta obscuridade tremenda, e todos os sistemas de entendimento que percebem a natureza como viva passam hoje, necessariamente e cada vez mais, por um grande ressurgimento. Da atual sociedade drogada, adita do desejo do desejo, para a sociedade sagrada. Este é o caso destacado das tradições indígenas, pois elas "são a memória viva do tempo em que o ser caminhava com a floresta, os rios, as estrelas, e as montanhas no coração e exercia o fluir de si", como diz Kaká Werá Jecupé, o tapuia nascido em São Paulo e que criou o Instituto Arapoty.


São Trezentos Milhões Falando

O momento é tão especial para a voz indígena, sob as mais variadas maneiras, que até mesmo os setores dominantes da sociedade a procuram ouvir. Ou pelo menos deixar que a ouçam um pouco. Este é o caso da canonização de Juan Diego em 30 de julho de 2002. Pela primeira vez na história das Américas um indígena foi canonizado. O beato Juan Diego, um índio mexicano de origem chichimeca, cujo nome indígena original era Cuauhtloatzin, a quem o Vaticano reconhece que Nossa Senhora de Guadalupe apareceu várias vezes, teve sua santidade reconhecida em cerimônia celebrada pelo próprio Papa no México. Isto certamente é mais uma sincronicidade na direção do respeito à voz indígena dentro da tradição cristã. Ainda mais quando se sabe que a Virgem de Guadalupe é exatamente a Santa Padroeira das Américas, continente no qual foram lamentavelmente executados milhões e milhões de indígenas.

É este mesmo México que apresenta ao mundo a luta extraordinária da Frente Zapatista de Libertação , que quer que o governo reconheça os direitos dos povos indígenas daquele país. Vale lembrar que somente em se tratando dos astecas, que à época da chegada de Hernán Cortez eram uma civilização altamente sofisticada com 25 milhões de pessoas, o massacre resultou em 24 milhões de pessoas assassinadas em menos de um século.

Temos que ter realmente um cuidado muito especial com a questão indígena, pois estamos falando de povos cuja presença em suas terras, na maioria das quais foram expulsos, se remonta a tempos imemoriais. Presentes desde o Círculo Ártico às Américas, África e Ásia, calcula-se que hoje são cerca de 300 milhões de pessoas que vivem em mais de 70 países.

Quase sempre estes povos se encontram entre as populações mais vulneráveis e marginalizadas destes países. Isto se dá exatamente em função de que a civilização dominante se construiu matando dentro de si mesma a voz que fala da origem comum de todos e de tudo, com suas leis de amor, de diálogo e de cooperação. De respeito à Totalidade. É por isto que a exclusão econômica e social relegou os indígenas ao nível mais baixo de todos em termos sanitários, profissionais e sociais e os expôs e expõe a um enorme sofrimento. Se construímos uma civilização que tem como fundamento principal abolir o sentido de cooperação, que é a dinâmica própria da manutenção do sentido da totalidade, da harmonia cooperativa, é claro que são os indígenas que pagam o preço maior: a loucura, o suícidio, a prostituição, o alcoolismo, as doenças, a desagregação pessoal e social.

Sabemos que o tapar ouvidos à voz indígena destrói inclusive a maioria daqueles que ocupam as posições econômicas, políticas e sociais privilegiadas, pois eles são em verdade excluídos de si mesmos, de suas próprias essências, como nos mostram a corrupção, as drogas caríssimas, o crime organizado, o comportamento doentio que enche os consultórios terapêuticos, o dia-a-dia e os noticiários de todo o mundo.

Em verdade se aqueles que estão no poder mundano, e nós mesmos com o nosso poder mundano, fossem(os) conectados com o Sagrado, este que nos fala da origem comum e de suas leis, que nos fala da dimensão espiritual , eles (nós) seri(í)am(os) pessoas benéficas, que saberiam(os) se(nos) conduzir e assim conduzir(mos) seus povos, tais como soberanos (pois cada um de nós é ou poderia ser soberano em sua própria vida) justos e bondosos.

Como se sabe, uma das maneiras mais eficazes de avaliar a justiça e a bondade de um reino, pós-moderno que seja, é fazer o que a sabedoria antiga chinesa nos recomenda no I Ching: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. E percorrer os reinos atuais, aliás o reino economicamente globalizado atual, é constatar a existência de algo profundamente equivocado.

O que se chama de desenvolvimento econômico, movido pela opção unidimensional do poder humano ignorante da existência da Totalidade, envolve e atinge a todos sem levar em conta a especificidade de suas múltiplas histórias, de suas culturas, de suas línguas, de suas tradições, de suas necessidades e prioridades. Corta, sumariamente, todos os seus projetos de vida, vínculos econômicos, culturais e espirituais que são a essência da identidade do humano. Reduz-se tudo e todos ao jugo do lucro e da obtenção de poder. Com isto faz-se qualquer coisa que o ego queira, como se não existisse uma ordem provinda de uma dimensão não-humana, pré-cultural, que a tudo criou, sustenta e transforma. Esta ordem que, sem totalitarismos, dá coesão psíquica e social.

Lamentavelmente esta maneira ignorante de organizar a vida humana é trans-cultural e trans-étnica e vem destruindo as pessoas e os povos em todos os continentes, sejam eles habitados por brancos louros de olhos azuis, quanto negros de pele brilhante, quanto amarelos, mulatos, caboclos e de qualquer outra matiz de pele ou interna. Quanto mais próxima a cultura está consciente da origem comum mais este sistema lhe reserva um lugar de sofrimento. É fácil entender agora porque os indígenas estão na mais baixa escala social. Eles pagam o preço de serem a memória viva da Natureza enquanto viva.


Uma Voz que Cresce

A gravidade é tão extrema que o sistema da ONU, sobretudo nas duas últimas décadas, tem procurado sintonizar-se diretamente com este interesse cada vez maior pela voz indígena. Neste sentido é que tem havido uma presença crescente de representantes indígenas em fóruns internacionais, como no Grupo de Trabalho das Nacões Unidas sobre as Populações Indígenas, orgão da Subcomissão sobre a Promoção e a Proteção dos Direitos Humanos, e naturalmente no Grupo de Trabalho sobre a Declaracão dos Direitos dos Povos Indígenas.

Um dos avanços mais significativos dos últimos tempos em termos internacionais foi a decisão tomada em julho de 2000 em relação à constituição de um Fórum Permanente das Nações Unidas para os Povos Indígenas, como orgão do Conselho Econômico e Social das Nações Unida (no qual no entanto ainda não temos um representante brasileiro) e que vem a ser o mais alto fórum já criado na ONU para cuidar deste assunto.

Os indígenas vêm lutando muito pela inclusão da denominação Povos Indígenas nos documentos oficiais, pela ratificação fundamental do Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT, que reconhece seus direitos no campo do Trabalho, pela abertura de espaços de participação em todos os níveis de decisão que lhes atingem, de cotas e inclusão da questão indígena nos Conselhos, nos Ministérios, nos organismos internacionais, pela demarcação e homologação das terras indígenas. Enfim, um sem número de lutas, pois praticamente tudo lhes foi negado uma vez que o paradigma Ocidental, como vimos, construiu-se na exata medida da proporção com a qual matou em si mesma a consciência de fazer parte de um todo, mergulhando na fantasia da separatividade. Esta destrutiva ilusão que os estados diferenciados de consciência , uma tecnologia espiritual tão utilizada nas culturas ancestrais -com ou sem as plantas sagradas (enteógenos)-, ajudam a superar.

Na dimensão brasileira, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB consagrou a Campanha da Fraternidade de 2002 exatamente aos povos indígenas, com o tema "Por uma terra sem males". Mesmo que sejam procedentes críticas a esta Campanha, por seu acento explícito na Catequese, como se pode ver em vídeo preparado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, e veiculado na Rede Globo, quando os índios que aparecem são convertidos e aparecem todo o tempo em uma missa, sabemos que setores significativos da Igreja Católica são de fato progressistas e efetivamente estão dedicados a que se escute a voz indígena.

Sincronicamente a esta situação, por incrível que pareça, a população indígena no Brasil vem crescendo muito nas últimas duas décadas. Se nos anos 80 tínhamos cerca de 260 mil índios, na virada do milênio eles já eram aproximadamente 350 mil, e hoje a Fundação Nacional do Índio os estima em 540 mil, distribuídos em 206 nações indígenas localizadas em todos os estados da Federação, à exceção apenas do Piauí.

O que chama muita atenção neste quadro demográfico é que para cada cidadão urbano brasileiro que nasce hoje estão nascendo três índios. Isto é impressionante, pois traz, na medida em que assumamos a nossa parcela de responsabilidade no processo, uma enorme contribuição para que o Brasil e a Humanidade re-conecte com a Natureza enquanto viva, pois como diz Ailton Krenak, coordenador do Centro de Pesquisas Indígenas, do povo Krenak de Minas Gerais, "muitas comunidades indígenas, mesmo tendo sofrido enormes mudanças no aspecto mais aparente de sua cultura, especialmente no tocante à "cultura material" (que é representada nos adornos, objetos de uso ritual, ou domésticos)" mantêm "a força mais sutil da alma" e "sua herança mais ancestral permanece. Mesmo que transmutada, (ela) continua alimentando a identidade".


O Resgate do Princípio Feminino

O fundamento organizador básico desta identidade resgatada é a identidade do princípio feminino, como falei no início. Como os indígenas estão na escala mais baixa da sociedade por sua cultura ser estruturada de forma geral sob o princípio feminino, as suas mulheres estão mais abaixo ainda, exatamente por serem a sede direta deste princípio abominado em nossa sociedade. Que mãe deixaria seus filhos morrerem à míngua em nome de ter isto ou aquilo?

A amiga e indígena Eliane Potiguara , que incorpora o feminismo e o socialismo em sua pauta de luta, afirma que "é preciso resgatar as funções que a mulher indígena desempenhava antes do processo colonial, quando era venerada e tinha a última palavra na discussão dos problemas políticos. (…) Aos olhos da sociedade, as mulheres indígenas estão abaixo da última das camadas da sociedade. Indígenas, pobres, discriminadas, excluídas, invisíveis, mão-de-obra escrava em plantios de cana-de-açúcar, algodão e outras culturas.

Quando estão próximas à mineradoras, são objeto sexual de garimpeiros ou mineradores, como relatam muitas histórias que já ouvimos dos ianomâmis, em Roraima. Nas cidades, empurradas por alguma razão social e política de sua nação, tornam-se prostitutas nas grandes cidades, objetos de tráfico internacional de mulheres, empregadas domésticas ou operárias mal remuneradas. Urge um trabalho de conscientização nas aldeias contra a violência doméstica e sexual, contra o estupro, o assédio, o alcoolismo que resultam nas violências interpessoais, nas intrigas, nos distúrbios psicológicos, nos suicídios."

Eliane faz coro com quem acredita que Governo e ONG's devem implantar um programa imediato de defesa dos direitos reprodutivos e de saúde integral. Para ela, isto é urgente "nas nações que mais sofreram os resultados maléficos da neo-colonização, como os povos ressurgidos e os quilombolas", e chega a dizer que "para compreender os negros temos que compreender os índios pois os negros são os índios da África."

E ela está com toda a razão neste ponto. Essas nações têm consciência de sua identidade mas precisam de apoio em todos os sentidos, seja do apoio que vem de dentro delas mesmos, seja do apoio que venha da sociedade nacional e internacional, por exemplo através de uma organização como o Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e a United Religions Initiative-URI (www.uri.org).


O Perdão e a Mãe Universal

Quem está atento à questão indígena sabe que o diálogo inter-cultural e inter-religioso com eles enfrenta muitas vezes hoje uma espécie de movimento quase separatista em relação à todas as outras culturas defendido por parte de lideranças das populações originárias. Esta posição é muito presente e obriga uma estratégia especial. Muitos deles expressam constantemente sua revolta, pois existe um ressentimento muito profundo, que é perfeitamente compreensível. Ainda mais quando se leva em conta a enorme e variadíssima contribuição da cultura indígena para a Humanidade.

É muito fácil perceber a importância indígena. Já procurei mostrar aquela que é, para mim a mais importante de todas: ter o princípio da Natureza enquanto viva como o estruturador de suas cosmovisões. Pois é a partir desta conexão com a Mãe Universal que eles, por exemplo, descobriram o algodão, para o qual criaram todas as técnicas de colheita, fiação, tecelagem e tintura mais tarde importadas pelos europeus; foram eles também que descobriram o chocolate; e o milho, que era cultivado nas três américas, com cada povo com seus híbridos favoritos, que atingem dezenas de variedades, formatos, cores, sabores, nutrientes, entre eles o milho azul (hoje, no entanto, o milho é uniformizado pela indústria agro-pecuária no mundo todo); o amendoim também, original da costa brasileira; o tabaco, que os europeus transformaram de um costume medicinal e cerimonial em um vício mortal; a própria batata, que no início foi banida pelo clero pois não era mencionada na Bíblia; o tomate também; a mandioca que, apesar de venenosa em seu estado cru, já era depurada do ácido cianídrico pelos índios; e a seringueira, que deu origem à borracha e dispensa comentários acerca de sua importância.

Quem entre nós não conhece feijão, abóbora, pepino, chuchu, batata-doce, berinjela, alcachofra, pimentas, abacate, abacaxi, caju, mamão, maracujá, banana e cana-de-açúcar, por exemplo? Pois é tudo descoberta indígena. Trabalho indígena. Cultivo indígena. As várias ervas medicinais, para dar mais um exemplo, cujas fórmulas indígenas foram aperfeiçoadas pelo homem branco, compõem mais de três quartos de todas as drogas de origem vegetal conhecidas. Com exceção de algumas rubiáceas [espécies], nos lembra o holoterapeuta e etnobiólogo Rogério Favilla , não há nenhuma espécie utilizada na farmacopéia moderna cujas propriedades já não fossem conhecidas pelos índios. E ainda há muitas outras espécies que são desconhecidas pelo homem civilizado.

É o amigo Favilla quem esclarece: "Aos nativos pré-colombianos devemos, entre inúmeras coisas, a rica herança etnobotânica que revolucionaria a dietária e a farmacopéia comparativamente precária dos europeus colonizadores e de suas matrizes desde época das navegações. Não apenas apresentaram aos pasmos europeus as plantas em si, como o milho, o tomate, a batata, o tabaco, o cacau, a mandioca, o inhame, o feijão, o caju, a batata-doce, o abacate, o pepino, a berinjela, o abacaxi, o palmito, e tantas outras hoje presentes nos pratos de todo o mundo (dos que tem acesso aos alimentos, é claro), mas também ensinaram como cultivá-los e prepará-los adequadamente. Ao contrário dos que pensam serem os nativos criaturas obtusas, a arte do cultivo e melhoria genética através da cuidadosa seleção das linhagens e de técnicas sofisticadas de plantio e adubagem foi plenamente desenvolvida pelos ameríndios."

É muito interessante lembrar que, além disso, temos um exemplo arquetípico da importância indígena. Arquetípico porque diz respeito a sede do Império atual: os Estados Unidos. Quando os colonos patriarcas ingleses desembarcaram do Mayflower lá, tiveram suas vidas salvas pelos nativos, que os ensinaram como caçar o abundante peru, pescar o salmão e as trutas, e a plantar e estocar o milho. Foi esta sabedoria que permitiu que eles sobrevivessem ao primeiro inverno. Até hoje este momento decisivo é anualmente relembrado pelos EUA no importante feriado, e olha que eles são raros, de Thanksgiving Day.

Do alto de toda esta sabedoria a um só tempo humilde e por isto poderosa, os indígenas estão hoje diante do desafio de exercer uma das mais desafiadoras posições do crescimento humano, espiritual: a do perdão, e mais, da pura compaixão. Ao passo que as culturas responsáveis por esta barbaridade precisam compartilhar o mundo servindo o sagrado na voz indígena e os ajudando em tudo, de maneira a que eles, guardiões da Terra-Mãe, possam liberar a nossa re-integração à Mãe Divina.


Construindo uma Cultura de Cura e Paz

Dentro da contribuição indígena para a construção de uma cultura de cura e de paz, as plantas sagradas ocupam um lugar de grande destaque, pois as capacidades medicinais e/ou curativas delas são capazes realmente de promover resultados brilhantes, mesmo em pessoas habitualmente afastadas de sua natureza original e de suas inalienáveis arqui-relações com o reino vegetal.

Esta é uma questão muito importante mesmo, da qual tratarei especificamente em outra oportunidade . No entanto, sublinho que a tradição indígena ensina que a utilização dos processos curativos das plantas deve sempre ser movido pela consciência, no caso pela consciência das leis cósmicas. Isto nos interessa quando queremos escutar a voz indígena, visto que muitas pessoas buscam todo tipo de infusões, poções, elixires, etc., mas não conseguem encontrar a cura, pois não querem reconhecer e corrigir os próprios erros que contribuíram para o surgimento de seus males. Ou seja, modificaram o nível de consciência que têm, e que gera dieta prejudicial, problemas afetivo-emocionais, hábitos errados de higiene, vícios, etc.

Para a voz indígena, como para todas as tradições espirituais antigas da humanidade, a verdadeira cura é um processo totalmente dependente da conduta e do comportamento psíquico do indivíduo, que se não for condizente com a normalidade fluente da natureza só gerará resultados frustrantes, até mesmo com o uso das plantas de poder. Precisamos mudar a nossa compreensão do mundo.

É desta forma que a voz indígena vive um momento decisivo de sua história. Que ela sirva de inspiração a todos os encontros que cada vem mais vêm ocorrendo no mundo a respeito dela. Exatamente porque a Humanidade vive um momento decisivo de sua história. Como Pierre Weil esclareceu, a busca constante de felicidade que caracteriza o ser humano confirma a presença de uma memória enterrada no âmago de sua existência. A memória de um estado de plenitude sem obstáculos e de êxtase permanente. É deste estado que nos fala a Voz Indígena.

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Este artigo (escrito originalmente em 2002 para o Ciclo Preparatório da United Rligions Initiative Global Assembly, tem 17 notas disponíveis para o interessado) está publicado em vários sites, no Brasil e na América Latina, entre eles:
http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91
http://www.uri.org/rio2002/port/frame_ciclo.htm
http://www.consciencia.net/cidadania/ouriques01.html
http://brazil-brasil.com/content/view/127/

Grande parte dele foi incorporado ao estudo É possível re-aprender a Sabedoria da Mãe, afagar a Terra, transformar a Realidade: o Modelo de Comunicação Cosmodinâmico e Multi-interativo e a questão do Diálogo, com o qual o autor concluiu o citado livro Diálogo entre as Civilizações: a Experiência Brasileira (www.unicrio.org,br, Biblioteca), que organizou e editou a convite da ONU em 2003, com o apoio institucional da UNESCO, da Associação Palas Athena, do Viva Rio e da UFRJ, através do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON/ECO/UFRJ, que criou e dirige na Escola de Comunicação desde 1981.