Tuesday 31 August, 2004

A Ancestralidade, o Rim e o Umbigo: Reflexões Práticas no Inverno Anual e Civilizatório

Artigo de Evandro Vieira Ouriques

(escrito para a minha intervenção no trabalho Inverno-Ciclo das Estações pela Medicina Chinesa Antiga, dirigido pela Dra. Rose Souza, em 04.08.2004, na Associação Brasileira de Arte e Ciência Oriental, Rio de Janeiro, dirigida pelo Dr. Raimundo Sohaku)

Quando me perguntam "Como cuido de mim ou de minha organização?", recomendo a construção de estados mentais não-violentos. Neste Inverno, a Dra. Rose Souza chama a atenção, em seu reconhecido trabalho, que esta Estação é, para a medicina chinesa antiga, o Tempo do Rim e da Bexiga. E que no Rim está armazenada a Ancestralidade, esta questão decisiva em minha vida e trabalho.

A construção de estados mentais não-violentos, o mesmo que estado de saúde, depende de que tenhamos nossa mente focada nos ensinamentos que advêm do fato concreto –inarredavelmente científico- de que temos ancestrais e que nossa interdependência para com eles precisa ser levada em conta. O que demanda um grande esforço, pois a economia psíquica pós-moderna se organiza ao redor da antecipação do futuro, ou seja, do que vem depois, do próximo objeto, da próxima conquista (seja de uma pessoa que assim se torna um objeto ou de qualquer outro objeto de consumo).

Recentemente quando estive na Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro (1) para falar a respeito das relações entre a não-violência mental e a saúde psíquica e social, uma especialista presente comentou um fato extremamente sintomático. O Hospital da Aeronáutica/RJ -o antigo e belo Hospital Alemão, situado no Rio Comprido e entregue ao Governo Federal em 1942- passou recentemente por uma reforma de "modernização" e a pedra fundamental daquele histórico prédio simplesmente sumiu. Ninguém sabe onde está o fundamento. Não é à toa que a medicina alopata trabalha apenas o sintoma e desconhece a origem causal, pois ela só pode ser encontrada sempre a partir do passado, do fundamento.

Ao contrário desta tendência cada vez mais intensa hoje de valorizar apenas o "novo", a ciência prova exaustivamente que é apenas graças aos nossos ancestrais que temos existência. Graças à árvore da qual somos fruto: tanto a árvore genealógica mais diretamente humana, nossos ancestrais pré-históricos, quanto aos nossos impensáveis ancestrais biológicos, celulares. Recentemente o estudo do genoma humano, por exemplo, nos revelou insuspeitos e íntimos parentescos nossos com certos animais como o rato…

Cientificamente, somos uma grande família. Como seres vivos e como seres sociais, nós somos descendentes -por reprodução- não apenas de nossos antepassados humanos, como dito, mas, muito além, de ancestrais não-humanos e por isso muito diferentes e que remontam há mais de três bilhões de anos. As células eucariontes, por exemplo, que compõem a totalidade dos corpos humanos, surgiram por volta de dois a dois bilhões de meio de anos atrás…

Todas as nossas células são descendentes, igualmente por reprodução, da célula particular que se formou quando um óvulo se uniu com um espermatozóide e nos deu origem (2). Não levamos em conta esta realidade em cada uma de nossas decisões, por exemplo. E é assim que ficamos doentes, desmemoriados do que somos.

Todas as células de um indivíduo são portanto descendentes da célula particular que se formou quando um óvulo de sua mãe se uniu com um espermatozóide afeiçoado por ele. A ciência já sabe que o óvulo se relaciona com os espermatozóides que se aproximam dele e libera determinadas substâncias que amolecem a área de seu próprio envólucro que está justamente diante do espermatozóide pelo qual também se afeiçoou, selecionou.

Ou seja, o Princípio Feminino participa ativamente da concepção (3), ao contrário do que fala a versão patriarcal/machista ao exaltar aquele "único e bravo" que venceu, "por si só", todos os outros, e "penetrou" na "passiva fêmea"…

A comunicação entre estes opostos complementares, a oposição-fundamento Yin e Yang, é a origem de você, que me lê agora. E mais: você continua a ser e sempre será apenas relação, como fostes na origem. Uma origem que não está no passado. Que está agora, em cada célula sua, em cada percepção sua à palavra que falo, em cada gesto no qual escrevo para você.

A doença, portanto, é a desconexão. É a perda da memória da Origem, esta que se manifesta na Ancestralidade. A Origem é assim esquecida e fica mentalmente separada do Ser Humano, que se pensa independente dela, de forma absoluta e última: Natureza separada de Cultura, Homem separado de Mulher, Vitória separada de Derrota.

É por isto que "ser vitorioso" é dominar, humilhar, abandonar o outro, excluí-lo, para pateticamente querer cuidar "apenas de si", como se isso fosse possível. Como uma criança congelada na fase do "quero-porque-quero", quando pensa existir sozinha…

As estatísticas da violência e da miséria de todas as ordens estão aí para comprovar este estado atual de infância generalizada (4). Que é exatamente o contrário da experiência de comunicação, da experiência de saúde, da experiência de democracia, aquela que ocorre entre, na relação efetiva entre células, orgãos, pessoas, culturas, civilizações (5).

Doença é a não-comunicação

Por isso o Dr. Hélio Holperin vê em seu trabalho com a homeopatia a "relação íntima entre a doença, que é um comportamento celular, e o comportamento humano, que é o reflexo do nível de consciência de quem adoece" (6).

Hoje, uma simples Olimpíada escolar existe apenas pela idéia de que poucos vão ganhar o "melhor" e a maioria vai ficar na pior, à espera de um dia ser "vitoriosa".

Essa é uma péssima e sintomática pedagogia, que nos faz entender o ódio de uma torcida contra a outra, de uma corporação contra a outra, de uma religião contra a outra, enfim o ódio entre crianças, entre alunos, alunos e professores, pessoas, partidos, classes, religiões, corporações, traficantes, mendigos, amantes, e mesmo, de forma muitas vezes surda, amigos e familiares.

É preciso que entendamos, se queremos estados mentais não-violentos (a cura) que a oposição é, sim, própria da Vida. E que ela exige que o indivíduo (o sujeito do ponto de vista ocidental) se afirme, como cada um de nossos ancestrais se afirmou para que estivéssemos aqui vivos. Mas trata-se de uma afirmação que não se faz na exclusão e supressão do Outro. Exclusão e supressão que é a violência. A doença. Sua origem? A perda do sentido de Unidade (7).

Por isso, a re-incorporação da Ancestralidade, através de metodologia própria para a lembrança mental e corporal, é o remédio que restabelece o vigor das redes que são as nossas famílias internas (celulares, orgânicas, emocionais, mentais, energéticas, enfim Chi manifesto) e nossas famílias externas (consanguinidade, vizinhança, comunidades, organizações, instâncias do Estado, corporações econômicas, mídia).

Como se sabe, a maneira mais eficaz de avaliar a justiça e a bondade de um reino continua a mesma recomendada pelo clássico da mutação I Ching (8) e que, entendo, podemos aplicar também na avaliação do reino do corpo: percorrer todas as partes do reino para ver como as coisas realmente estão. Se os estados mentais do sujeito se movimentam em acordo ou desacordo com as qualidades formais e sensíveis dos orgãos.

A doença é portanto realmente falta de comunicação, como percebemos Dr. Raimundo Sokaku e eu nos anos 80, em uma de nossas sempre longas conversas a respeito das relações entre a Tradição e o vigor de uma Cultura de Saúde. Hoje, eu sustento que doença é a não-comunicação, na medida em que compreendida a lição de cada uma das doenças, ou seja as virtudes que precisam ser aprendidas, elas deixam de ser doença como maldição e passam a ser simplesmente irmãs, misericordiosa revelação dos ensinamentos que vêm da face mortal de nossa Mãe.

Na última greve de fome de sua vida, Mahatma Gandhi tinha 78 anos. Era janeiro de 1948, aquele herói lutava pela Paz na Índia e no Paquistão, dilacerados, divididos e "independentizados". Aqueles que o iriam assassinar já tinham chegado a Nova Delhi. Cuidar do Mahatma era uma tarefa difícil, pois ele estava quase à morte, à beira da coma total.

Os representantes máximos de todas as forças políticas e religiosas decisivas da Índia e do Paquistão, e mesmo a do ex-Vice-Rei do Império das Índias -então já Governador-Geral da Índia e do Paquistão- estavam a sua cabeceira, convocados por ele a se entenderem. Sob a pena de Gandhi se entregar deliberadamente à Morte.

Pois bem, tratava-se do destino de 400 milhões de seres humanos, e se ele estava no fiel da balança, era por estar focado na não-violência, no respeito à totalidade, na honra à Ancestralidade que exige a tolerância, o diálogo, o respeito mútuo, o encontro da semelhança que re-une os irmãos e as irmãs. Re-une a dispersa família.

Mesmo tendo uma magnitude que palidamente se percebe após centenas de páginas e muita meditação, Gandhi (9), a Grande Alma (este é o significado de Mahatma), apresentou bruscas crises de desespero -em momentos de muita intimidade- diante de alguns minutos de atraso na chegada de um item vital em seu código de higiene. Contrito com seu próprio paradoxo, assim ensinou: "Não nos tornamos verdadeiramente conscientes de nossas imperfeições (…) senão atravessando uma prova como o jejum" (10).

A vitória da ascendência sobre si,
pelo exercício da memória de quem se é

A questão é que aquele que se reconhece como indivíduo, e começa a se instalar de forma densa quando o cordão umbilical é cortado, necessariamente precisa se reconhecer como responsável por si mesmo. E isso dá medo. E mais, dá pânico. Um pânico aterrador. "Estou sozinho" é um estado mental muito próximo ao de "fui abandonado", quando a Mãe é maldita. Agora vejam! O estado emocional (aqui o mesmo que estado mental) relacionado com o Rim é exatamente o medo, o pânico.

Portanto o Rim nos fala que é para vencermos este medo infantil, que nos faz querer controlar compulsivamente o mundo, e que cresce até se tornar pânico generalizado, este estado mental que caracteriza os dias atuais, com sua violência, guerra, miséria e terror. Entre o Nascimento dado e a invernal e escura Morte certa, o ser humano tem muitas razões para ter medo e pânico, mas trata-se de um estado mental superável.

Neste sentido, nossos ancestrais chineses nos ensinam que a virtude relacionada ao rim é a força de vontade. Exatamente a qualidade necessária para superar o pânico e construir estados mentais não-violentos.

Com honestidade, sinceridade e integridade (atitudes recomendadas pelo Dr. Hélio como favorecedoras do Rim e Vias Urinárias [11]) precisamos manter na mente os ensinamentos da Ancestralidade. Esta chama que seria a de uma olimpíada adequada ao Terceiro Milênio: aquela em que se busca a vitória sobre o estado bárbaro que está dentro de cada um de nós (12); a vitória da ascendência sobre si, pelo exercício da memória de quem se é.

O ensinamento esquecido do Umbigo:
a memória dos Tempos e da Eternidade

Nossos umbigos são a maior lição evidente de ancestralidade que temos inscrita em nossos corpos. Tão devocionalmente interessados e crentes na "potência" libertadora e criadora do ciberespaço por si mesmo, esquecemos de olhar para o nosso próprio umbigo e vê-lo como a tomada de conexão da rede da ancestralidade.

Esta rede que nos pluga à nossa mãe e pai, às mães e aos pais deles, e mais uma vez às mães e aos pais daqueles, e também, e dos outros mais, fios de hereditariedade que se encontram na memória dos tempos. Exatamente esta genealogia que precisamos ter em mente, e que ultrapassa a história humana e mergulha –na mesma proporção em que mergulhamos em nossos corpos os alimentos, a água e o ar- na inexorável e determinante história biológica da Vida e do Universo.

Podemos entender que o Umbigo, ao contrário de nos inspirar apenas como egoístas, em verdade nos lembra da Mãe e esta do Pai, e este da Mãe, e enfim, e por começo, do Colar da Ancestralidade. Como o formado pelo oceano, praias e rios de hoje e de ontem nos quais repousam todos os grãos de areia. Como nós, humanos, queremos repousar dinamicamente em nossos corpos, em todas as nossas relações, por todas as nossas relações.

Escutemos então neste Inverno a voz da Ancestralidade, da qual a Voz Indígena (13) nos fala de forma tão privilegiada. Pois ela é a nossa própria voz. A voz das verdades necessárias a cada um de nós e que só se revelam na medida exata de nosso esforço disciplinado. Do esforço de aprender a medicina -usando uma expressão indígena norte-americana- do Inverno. Deste Inverno não apenas no sentido do Ciclo Anual, mas também, e sobretudo, no sentido de Inverno Civilizatório, pois com certeza os ventos que ventam na epopéica Civilização Ocidental são agora invernais e escuros. Este é a aventura que se oferece a nós.


Notas

1. Tema apresentado no debate promovido pelo Serviço de Reabilitação da Polícia Federal/RJ, em 27.08.2004, a respeito da atual condição masculina, a partir das questões do filme Beleza Americana, que encerrou da série de dez encontros do projeto Reflexão para Homens da Polícia Federal. Faziam também parte da mesa (sob a responsabilidade do coordenador do referido Serviço, Sr. João Paulo Bezerra do Nascimento, agente da Polícia Federal, fisioterapeuta, acupunturista, e do Dr. Luiz dos Santos, psicológo): o Dr. Sebastião Luiz Rodrigues Moreira, homeopata, agente da Polícia Federal e presidente do Sindicato dos Servidores do Departamento de Polícia Federal no Rio de Janeiro; e o Dr. Philippe Bandeira de Mello, psicólogo yunguiano e transpessoal.

2. Ver MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco J. 2001. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. Palas Athena, São Paulo.

3. WILHEIM, Joanna. 2002. O que é psicologia pré-natal. Casa do Psicólogo. p.25

4. Refiro-me ao conceito de Lacan.

5. Ver OURIQUES, Evandro Vieira (org.). 2003. Diálogo entre as civilizações: a experiência brasileira. ONU, Rio de Janeiro. Apoio institucional UNESCO, Viva Rio, MIR/ISER, CETCC/ECO/UFRJ e Associação Palas Athena. Este livro está disponível para download gratuito em www.unicrio.org.br, Biblioteca.

6.HOLPERIN, Hélio. 1999. A cura pelas virtudes, um redimensionamento da saúde e da cura. Pensamento, São Paulo. p.8

7. Ver OURIQUES, Evandro Vieira. 2002. Como o ser humano voltou ao lugar de onde nunca saiu: a Unidade Sagrada. In www.uri.org/rio2002, Ciclo Preparatório da Assembléia Global da United Religions Initiative, Mesa-Redonda Os Imperativos Ecológicos e a Mobilização da Sociedade. URI, Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro/ISER e Viva Rio.

8. Ver JULLIEN, François. 1997. Figuras da imanência: para uma leitura do I Ching, o clássico da mutação. Editora 34, Rio de Janeiro.

9. Sobre o papel transmutador da entrega com propósito, é muito importante compreender a questão da ação desinteressada. Ler, p.ex.: OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. Gandhi e a ética na mídia. In http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=291ASP021

10. LAPIERRE, Dominique e COLLINS. Larry. 1976. Esta noite a liberdade. Círculo do Livro, São Paulo. p.478. Trata-se de longo e muito interessante trabalho, apesar de mostrar-se escrito sob uma forte ótica européia e sobretudo pró-inglesa. No entanto, tendo em vista o reconhecimento que Gandhi faz em sua autobiografia de outras dificuldades pessoais, registro esta citação por ela exemplicar bem o caráter titânico da luta pela ascendência sobre si.

11. HOLPERIN. 1999:49

12. Refiro-me à expressão do sociólogo francês Michel Maffesoli: ver seu livro A razão sensível. 2001. Editora Vozes, Petrópolis.

13. Ler OURIQUES, Evandro Vieira. 2004. A Voz Indígena. In http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=91.


Sobre a Ação Desinteressada em Gandhi e a Ética na Mídia

Artigo de Evandro Vieira Ouriques

(Publicado em vários sites, entre eles Observatório da Imprensa, Consciencia.net, Revista NovaE, Comunique-se

Recentemente, em uma conhecida lista de discussão a respeito de éticae mídia, alguém qualificou Mahatma Gandhi e Dom Hélder Câmara de"falsos profetas", chegando a esta conclusão inquietante, e sintomática como procurarei mostrar, apenas avaliando dois pensamentos destes homens, que haviam sido gentilmente postados na lista por outra pessoa.

Dom Hélder foi considerado "falso profeta" por ter dito algum dia que "o segredo para ser e permanecer sempre jovem, mesmo quando o peso dos anos castiga o corpo, é ter uma causa a que dedicar a vida". Isto foi considerado um sofisma, pois para se viver se precisaria saúde, e em relação a se ter uma causa para isto, foi recomendado cuidado, pois Hitler também "tinha, e bem definida, uma causa". Por sua vez, o crime de Gandhi foi ter dito, também um dia, que "a satisfação está no esforço e não no resultado final". Esse princípio, central no pensamento gandhiano, foi considerado uma "falácia", pois "em qualquer atividade o importante é o resultado".

Eles foram assim sumariamente julgados e condenados em exatas 57 palavras, incluindo a assinatura da mensagem a qual analiso: tanto Gandhi, o homem prático que recusou os modelos simplificadores e criou uma ética operacional política que libertou os "intocáveis" e a Índia por meios não-violentos, fundando assim um novo regime político e um Estado, e pondo a pá-de-cal no Império Britânico; quanto Dom Hélder, o ganhador do exigente Prêmio Popular da Paz, defensor enérgico da Teologia da Libertação e da Não-violência durante a sombria Ditadura Militar brasileira.

Reflitamos um pouco sobre este caso. O que Gandhi -que nunca foi profeta, quanto mais falso- fez ao falar do desapego em relação ao resultado das ações, é negar o produtivismo, essa mentalidade doentia que, hoje de forma ainda mais intensa do que nos dias gandhianos, sincroniza os aspectos sombrios do capitalismo tardio com a irreferência da pós-modernidade, paradoxalmente referenciada no "livre" exercício de quaisquer desejos, cuja legitimidade é apenas a de sentí-los, e no dinheiro como equivalente geral, como Marx o denominava.

O que está em vigência hoje, sabe-se, é a mercantilização absoluta das relações, quando nos obrigamos a calcular o lucro que cada ação e cada relação nossa nos trará, para que o acumulemos, como se isto fosse felicidade. É esta mentalidade, precisamente, que fez com que a cultura de comunicação fosse sucedida pela atual cultura da informação, pois a experiência de comunicação é aquela da ordem da diferença, e portanto, aquela que se produz apenas no entre, nas relações.

A cultura da informação, ao contrário, é exatamente a que se constrói no dirigir-se a, ou seja, é aquela a qual só interessam os resultados da atividade, que serão obtidos junto à audiência pela transmissão da informação dirigida a ela, da maneira a "mais eficaz possível". É daí que temos a cultura da eficácia, do produtivismo, e o entendimento da Comunicação não como communication mas apenas como communications, ou seja, apenas como meios de comunicação, meios de persuasão. (Im)puro convencimento.

Lembramos como esta perspectiva interessa ao sistema, já que é ela que o sustenta ao garantir o esquecimento da experiência -sempre livre e desinteressada- da comunicação (pois nunca podemos saber onde as conversações nos levam) em prol da ação interessada no mundo, da transformação do mundo em mercado, do sujeito em consumidor e do pensante em idiota, seja lá qual for a cor de sua pele.

Gandhi fala exatamente do oposto. Ele não age porque vai ganhar alguma com isso no sentido vulgar. Ele age porque este comportamento é da ordem da ética. É ético. E por ser ético, basta a si próprio, não necessitando de nenhum resultado "objetivo".

Se alguém está entendendo estas rápidas considerações como mera divagação, o que é compreensível pela falta de hábito capitalista e pós-moderno de pensar, ainda mais com vagar, sublinho que do ponto de vista o mais pragmático que seja, é através do desapego dos resultados da ação que podemos eliminar, por exemplo, a correspondente frustação e depressão -um dos padrões psiquícos mais presentes na humanidade hoje- que teremos que incorporar e administrar se vivemos na expectativa do reconhecimento alheio para cada atitude nossa.

Generosidade é outro nome deste desapego, que certamente é da ordem da solidariedade, aquela a qual o Forum Social Mundial, por exemplo, tanto se refere quando examina se um outro mundo é possível, ou nós quando trabalhamos para saber se uma outra comunicação é possível. Ou, a rigor, se a experiência de comunicação ainda é possível.

A precipitação deste julgamento infeliz me faz lembrar de todos os meus próprios julgamentos infelizes, que acabaram por me convencer, inclusive a partir do exemplo de pessoas extraordinárias como Gandhi e Dom Hélder, que se queremos ética, e consequentemente ética na mídia, devemos avaliar sempre de maneira profunda e vagarosa tudo o que se apresenta, começando por nossos desejos e idéias, pois, como se sabe, a superficialidade promovida pela velocidade extrema é exatamente pilar da cultura tecno-lógica. E acabamos sendo pensados e sendo sentidos pelo discurso que nos atravessa e que, pelo hábito e pela "objetividade apressada" em obter resultados com nossas atividades, terminamos tragicamente acreditando ser nosso.

Neste sentido, em relação a Gandhi, por exemplo, sugiro para os que querem superar o jugo do Império Americano ("o estado de espírito bárbaro está em cada um de nós", citando Maffesoli), a leitura de O caminho é a meta, Gandhi hoje, de Johan Galtung (Editora Palas Athena, 2003). Ele é o pioneiro e renomado cientista social especialista em estudos para a paz e teoria dos conflitos, que atua nas universidades do Havaí, de Witten/Herdecke, de Tromsoe e na Universidade Européia da Paz, e fundador da Transcend (transcend.org), e que já trabalhava pela paz na década de 70.

O que Gandhi fez, em essência, foi constituir uma moral pelo exemplo, aplicando à sua própria vida as reformas que pregou e conclamando os cidadãos a demonstrarem a capacidade política de se governarem, através do exercício diário do auto-domínio, estimulando o outro, através do exemplo, a modificar o seu comportamento: lutando, portanto, primeiro contra si próprio para dominar-se em relação à série infantil eu-quero-porque-quero (a lógica da sociedade de consumo) e dessa forma ganhar ascendência sobre si, a maneira, aí sim, mais eficaz de nos livrarmos da obsessão do poder.